Direito do consumidor: garantia ou vida útil?

O desconhecido critério da vida útil do bem, nas relações de consumo, e o prejuízo sofrido por consumidores que continuam não sabendo quais são seus direitos.

Pergunto em sala de aula o que é a popular ‘garantia’, de um produto. Todo mundo responde, em coro: é o prazo máximo ao qual o fornecedor está obrigado a consertar o produto sem custo para o consumidor, e depois disso, que chore. Pode haver um equívoco, aí, com a palavra ‘máximo’, de prazo máximo. E isto costuma deixar muita gente pasmada.

Jurisprudência da 4ª Turma do STJ, citada em literatura das mais especializadas[1] explica: “Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Despois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir… O CDC, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual.”

Ou seja, aí ‘garantia’ não é critério jurídico para as relações de consumo, e sim um outro, totalmente diferente: a vida útil estimada do bem. Por outro lado, vê-se que garantia não é, como todo mundo acha, o espaço máximo de tempo ao qual o fornecedor está obrigado a atender, mas mínimo.

Uma aplicação de um mesmo instituto jurídico feita para um sistema, por exemplo, o sistema do Código Civil, pode se mostrar equivocada se a finalidade for considerar este instituto aplicado em algum subsistema, por exemplo, o de defesa do consumidor. Assim, ‘vício oculto’ em Direito Civil, CC art. 441, terá uma funcionalidade, mas em Direito do Consumidor, CDC art. 26 § 3º, terá outra, ainda que seja o mesmo instituto nominalmente considerado. Dá-se igual com contrato de adesão e outros tantos institutos.

O critério da vida útil do bem, no CDC, é estranho para leigos em Direito, e mesmo para advogados sem um estudo detalhado no tema. O critério da vida útil posterga o início do prazo de 90 dias – a garantia legal, do CDC-, para um futuro incerto, um marco temporal que efetivamente não se tem hoje, e não se conhece. Somente quando o produto apresentar um defeito, inclusive muito depois de expirada a garantia contratual (a que a empresa dá), que pode ser 1, 2 ou x anos, é que começará a fluir o prazo de 90 dias para a garantia legal. Se o defeito no produto estiver perfeitamente dentro de um tempo de uso, de anos, que se estima que o produto tenha (!) que durar, estar-se-á diante de um vício oculto, e a garantia legal, dos 90 dias, só começará a contar aí, a partir da ocorrência do defeito. Mesmo a garantia contratual já tendo acabado há anos.

Toda e qualquer relação jurídica no direito brasileiro atual tem que ser, obrigatoriamente, regulada pela boa-fé. Assim, por exemplo, seria óbvia má-fé iludir o consumidor com uma publicidade que garantisse vida longa a uma geladeira, cuja marca é vendida como top-das-galáxias, e 2 ou 3 anos após o término da garantia contratual ela quebrar e a empresa responder com um polido e atencioso ‘dane-se’. Ocorre que se não for compreendida a diferença de uma relação de boa-fé, em que um consumidor – o polo fraco- acredita na higidez e segurança do produto, e depois se vê abandonado pela extinção da garantia contratual, à qual é óbvio que o produto não pode dar defeito, e uma relação de má-fé, somente para vender produto, não se compreenderá o critério da vida útil do produto.

Assim, compra-se uma geladeira maravilhosa, com garantia de 2 anos e ela quebra com 4 anos de uso normal. Reclamado o defeito na loja ou na fábrica, o polido vendedor ou o crédulo gerente dirão, com espanto, que a garantia já acabou. Nem compreenderão o que o consumidor quer, pois todo mundo sabe que a garantia contratual ali era de 2 anos. Esta resposta valeria para um sistema jurídico que adotasse apenas o critério da garantia como limite para um conserto sem ônus ao consumidor. O que não é o caso do CDC. E não adianta o insistente vendedor pegar a garantia no manual do produto, escrita pela fábrica e exibi-la olimpicamente ao consumidor, como se este fosse analfabeto.

Pelo critério da vida útil do bem, estimar-se-á – o verbo é aberto mesmo-, em boa fé, quanto tempo o produto tem (!) que durar. Sim, é valorativo, só não pode haver má-fé na estimativa. É um critério jurídico dúctil, ponderado, em que fatores jurídicos latos são considerados. Por isto a jurisprudência do STJ, apoiada naturalmente no CDC, art. 26, § 3º explica o critério da vida útil, chegando a se referir à possibilidade de reclamação quando o vício de adequação ‘não corresponder à legítima expectativa do consumidor, quanto à sua utilização ou fruição[2]

A doutrina também é conteste e absoluta. Sergio Cavalieri Filho[3] ensina ‘Se o vício é oculto, o prazo só começa a correr a partir do momento em que ficar evidenciado o defeito.’ Rizzato Nunes[4] registra ‘a hipótese de vício oculto, que gera início do prazo para reclamar apenas quando ocorre.’ Tartuce e Neves[5] apontam que pelo critério da vida útil do bem ‘o fornecedor permanece responsável por garantir o desempenho do produto ou bem durante todo o período de sua vida útil estimada’.

Por fim, a mestra Claudia Lima Marques[6], traz jurisprudência do tribunal gaúcho igualmente esclarecedora: “Se o vício é oculto, isto é, aquele capaz de só se manifestar com o uso, o termo inicial da garantia fica em aberto, de tal sorte que somente após constatado o vício é que inicia a contagem do prazo decadencial.” (TJRS, 16ª Câmara).   

Imagina-se, então, que uma conversa sobre o instituto jurídico do vício oculto e sua garantia ‘permanente’ imposta às empresas, com pessoas e fornecedores preocupados exclusivamente em desovar produtos sobre consumidores, o famoso bater-meta, será algo meio perigoso. Primeiro, poderão alterar a voz e o ânimo dizendo que nunca ouviram falar nisso, como se seus conhecimentos ‘jurídicos’ de internet valessem. Segundo, quererão saber, em positivismo roxo e lacração-xeque-mate ‘onde’ está escrito a vida útil de todos os produtos. Ao serem informados que este rol não existe, certamente dirão que tudo isto não vale nada. Então tá.

Mas, abstraídas as meigas figuras ‘jurídicas’ fornecedoras, o fundamento do critério da vida útil se mostra totalmente lógico, e humanista. É mais do que óbvio que se um fabricante de geladeira, fogão, automóvel etc. concede, contratualmente, 2 ou 5 anos de garantia contratual a um modelo qualquer, o produto não pode, em hipótese alguma, quebrar neste miserável e irrisório espaço de tempo, considerado o tipo de utensílio que antes da invenção da malandra obsolescência programada, durava décadas. Pergunte a algum avô ou avó, dos antigos, quanto tempo durava uma geladeira ou um fogão. Ou o Fusca.

O que ocorre, então, desgraçadamente, numa sociedade como a brasileira, é prejuízo em cima de prejuízo, pelo desconhecimento. Três fatores entram aí. Uma alta ignorância jurídica na sociedade, algo totalmente compreensível. Por segundo, uma frenética e obtusa crença de que a praga de mensagens reenviadas de WhatsApp ‘ensina’ Direito, então tá-2. Por fim, uma cultura de não se buscar conhecimento verdadeiro e optar-se por fofocas. Assim, o consumidor vai à loja, com um defeito em seu produto, e é informado que sua garantia acabou. Volta para casa, sem saber que tem direitos, mas totalmente convencido de que não os mais têm. Chega a dizer que foi o ‘próprio’ gerente da loja que garantiu isto. Então tá-3.

O subsistema do Direito do Consumidor já produziu uma massa científica de conhecimento admirável, tanto doutrinário quanto jurisprudencial. A única saída continua sendo o bom e velho estudo, paciente, refletivo e sistemático.

Jean Menezes de Aguiar


[1] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2019, p. 849.

[2] STJ, Resp 967.623/RJ 3ª Turma, Rel. Nancy Andrighi.

[3] CAVALIERI, Sergio Carvalho. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 586.

[4] RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao código de defesa do consumidor. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 574-575.

[5] TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor. 7 ed. São Paulo: Método, 2018, p. 178.

[6] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 853.



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