Afinal, o que é filosofia?

Jogando conversa fora, outro dia, com um amigo dentista, ele me perguntou a frase do título. Mostrou-se interessado, afirmando que nunca havia estudado a coisa. O tempo era curto, desconversei e acabei não respondendo. As considerações mais interessantes sobre o que é ou não é filosofia, ou melhor, até ‘onde’ pode ir a filosofia, nos livros especializados, são desconcertantemente múltiplas, deslumbrantemente contraditórias e decididamente inconclusivas. Vão aqui algumas ideias tiradas de autores seniores.

De início, cabe indagar sobre possível importância da filosofia. Marx (XI tese sobre Feuerbarch), em passagem célebre, afirmou que ‘os filósofos se limitam a interpretar o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo’, parte de pensamento que se vê integrado na tradição moderna da filosofia crítica. Em termos de importância pessoal, a filosofia poderia ser considerada como espécie de ginástica da inteligência, aproveitando das aulas do saudoso professor Roland Corbisier quando comparava Atenas, que produziu pensadores, com Sparta, que só produziu músculos.

Já sobre um conceito de filosofia em si, uma boa pista será Feyerabend (Contra o Método) que dizia ‘prefiro as formulações mais paradoxais’. Às vezes as tortuosidades e vieses acabam mostrando a quê ou a quanto a filosofia pode estar ligada.

Noutra linha parecida, Pascal (Café Philo): ‘Zombar da filosofia é fazer filosofia’. Com esta leveza, o filósofo enfrenta conservadorismos que se notabilizam por seriedades autoritárias, e, claro, chatas. Poucos têm a segurança de permitir a zombaria a si, às suas coisas e aos seus. Quem o permite e apenas sorri como resposta, talvez se torne temido demais para um interlocutor ditatorial. Deleuze (Conversações) respondendo a um severíssimo crítico que reclamou inclusive das suas unhas – veja só-, escreveu ‘Você é encantador, inteligente, malevolente, quase ruim’. O problema do crítico será apenas o seu ‘quase’.

Desconjuntando um pouco a própria existência da filosofia, Sartre (Conferência de Araraquara) relativiza no plano conceptual. Explicou, um dos pais do conceito de ‘intelectual’, em 1960 a uma delirante plateia brasileira: ‘Não existe a filosofia se desenvolvendo desde que houve homens, na direção de seu fim, mas o que há são filosofias.’

Estruturas conceituais didáticas sobre a filosofia são valiosas e necessárias para os inícios. Mas, falas raivosas sobre a própria origem da filosofia podem conter seduções especiais. Como a do Chanceler Séguier no Parlamento, século XVIII, referida por Georges Minois (História do Ateísmo): ‘Ergue-se entre nós uma seita ímpia e audaciosa; ela decorou sua falsa sabedoria com o nome de Filosofia; com esse título imponente, pretendeu possuir todos os saberes. Com uma mão, tentaram abalar o trono; com a outra, quiseram derrubar os altares. O objetivo era destruir a crença, fazer que os espíritos vissem de outro modo as instituições religiosas e civis. Os adeptos se multiplicaram, os reinos sentiram estremecer seus antigos alicerces.’

Na oficialíssima admoestação, há muito a se saborear. A equiparação à seita, alvissareira inveja mal resolvida. Depois uma ‘posse’ de sabedoria, além de tudo, falsa. Por terceiro, a audácia de se discutir tronos e altares. Como se reis e deuses fossem impermeáveis à verdade. Por fim, a assumida derrota dos adeptos. O pensar, em muitos casos consegue vencer a fúria do último órgão ativo do ser humano, a língua, com a fala, antes do tranquilizador e notável suspiro da morte.

Mas filosofia também é diversão, a seu modo mas é. Marco Casanova (A Persistência da Burrice) registra: ‘É normal que, ao dizer a alguém que se trabalha com filosofia, logo se o escute dizer: ‘Puxa, que ótimo! Adoro filosofia’. Essa experiência imediatamente se transforma, porém, caso se comece efetivamente a falar de filosofia com as pessoas. A filosofia é um escândalo para o senso comum.’

Muita gente acha que filosofia, senso comum e visão de mundo sejam sinônimos. Heidegger (As Questões Fundamentais) anotando ‘a filosofia como saber imediatamente inútil’, já a considerava totalmente contrária à visão de mundo. Voluntaristas, personalistas e outros autoritários soltos pelas cidades invocam possuir filosofias próprias. Então tá.

Certa vez iniciada uma aula, note-se, de direito, aos 3 minutos e ainda na apresentação, falei que trabalhava com filosofia. Um aluno, de pronto, sacou: ‘professor, você é ateu?’ Dei um sorriso – talvez de nervoso-, e, claro, desconversei, porque se considerasse ali o que em Casanova pode ser um escândalo, e o que Dawkins (Deus um Delírio) revela da pesquisa Gallup de que o ateu de hoje na América é o equivalente ao homossexual de 50 anos atrás em termos de credibilidade, poderia haver alguma dificuldade nos trabalhos acadêmicos de sala de aula.

Numa sociedade cheia de problemas como a do Brasil, que mal se entende com seu conservadorismo atroz, o gênio de Hegel (Filosofia do Direito) teria problemas. Há quase 2 séculos, após expor o farisaísmo da piedade, cobrava que ‘só houvesse proibições jurídicas’. Empáfias morais continuam sendo perfeitas para punitivismos e preconceitos, discriminações e ódios. Não por outra razão, Sloterdijk (Crítica da Razão Cínica) considera a honra um ‘narcisismo social’.

Mas o título do artigo lembra o livro de Alan Chalmers ‘O que é Ciência Afinal? Um título de livro que me pareceu ‘estranho’, há 30 anos, afinal, não há os ‘afinais’ para certas áreas e conceitos, e eles podem ser muito bem utilizados, às avessas, para demonstrar, exatamente, esta ilimitação ou inconclusão aporética.

Mas e aí: o que é filosofia? Talvez tenhamos, aqui, que ficar com a coisa da ‘seita ímpia e audaciosa’ de Séguier, sob pena de ‘choverem maldições e palavrões como só as mulheres sabem proferir’, belíssima expressão de Platão (Fédon) sobre Xantipa, sentada ao lado do marido, há quase 2500 anos.

Aos alunos de filosofia.

Jean Menezes de Aguiar



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