
Gulliver, o médico das famosas Viagens, ao chegar ao país dos Houyhnhnms, os cavalos inteligentes, se viu na dificuldade de explicar aos bichos como funcionava a justiça inglesa. Os cavalos eram lineares, e o direito tinha que ser construído considerando as relações sociais.
Já se disse que as ciências exatas explicam e as humanas compreendem. Se não fossem uma coisa só, poder-se-ia brincar que se a explicação, em muitos casos, exige um dócil receptor que saiba contar até dez nos dedos; a compreensão, noutras áreas, exige mentes complexas, amadurecidas e abstratas. Por isso, em Kant, todos os atos do entendimento são juízos, e o entendimento é a faculdade de julgar.
Se alguém tem a necessidade de compreender algo que não é de sua área de formação, conhecimento ou atividade profissional, pode se ‘comportar’ de duas maneiras.
A primeira, aristotélica, maravilhando-se diante do novo, da ciência. Aqui a pessoa evoluirá, aprenderá e conseguirá corrigir ou melhorar visões de mundo que mantinha equivocadamente. Este é um interlocutor que vive melhorando, pois aprende coisas a cada dia e momento da vida, diante do novo. Ele não tem o preconceito do olhar blasé para a descoberta, por isso evolui.
A segunda forma de reação é por meio da teimosia, portátil e cômoda, que muitos mantêm. Ela só hipertrofia crenças, este misticismo cognitivo que faz com que a pessoa acredite possuir certezas inquestionáveis e verdades absolutas, as duas tralhas para qualquer ciência.
A polarização política revelada no Brasil dos últimos anos, a mesma que entrincheira pessoas no imobilismo cognitivo, é o melhor nutriente para a manutenção das certezas dogmáticas, as preferidas dos autoritários que não admitem questionamentos.
Como Direito e Economia, por exemplo, entraram na moda, com todo mundo e qualquer um ‘lacrando’ sobre ciência constitucional ou modelos econômicos, qualquer um pode ser tachado prontamente de ‘comunista!’ (que medo!), se não agradar ao mamífero interlocutor. E note-se que essa criatura jamais consegue conceituar comunismo, sabe-se. A sociedade brasileira finalmente parece ter chegado ao país dos Houyhnhnms, os cavalos inteligentes.
E conversar com um deles dá muito trabalho e pouco, muito pouco prazer. Como sempre, os cavalos inteligentes são ‘operosos’ e passaram a ocupar postos chaves. Leem essa última frase e concordam austeramente, como se não possuíssem o cavalarismo em si. Outros até escrevem artiguinhos assim.
Argumentos dos cavalos inteligentes costumam se dirigir ‘contra’ o interlocutor, bem ao estilo estratagemas de Schopenhauer, ou seja, sem ter razão. No caso dos cavalos inteligentes, são tão primários os argumentos que não chegam a constituir, efetivamente, um argumento, não há conteúdo, só preocupação em derrotar o interlocutor.
O saldo episódico de tudo isso é o analfabetismo científico, termo de Carl Sagan. Uma sociedade que sequer foi minimamente alfabetizada em termos de conhecimento, saber, ciência, e apenas aprendeu funcionalidades matemáticas e informações sobre a língua e a história, acaba dando nisso. Há quem chegue a solicitar, numa corriqueira conversa de WhatsApp, que o interlocutor grave a informação em vez de digitar, pois que ler se torna uma atividade hercúlea.
Há um processo agudizado de burrificação no país, negando conquistas, avanços sedimentados e dados científicos. O filósofo Marco Casanova na obra A Persistência da Burrice, estuda o cenário. Pessoas escondidas em ideologias políticas atrozes contestam, de forma crédula, e oca, o que se lhes dá na telha, desde a democracia até a justiça, valores civilizatórios, ao mesmo tempo que requentam, orgulhosas, preconceitos, nazismos, racismos e tantas outras infâmias, desde que mancomunadas com seu candidato político. A busca pelo ‘seguidor’, gênero que Nietzsche já zombava, é a mera negação do pensar.
Pais tão desesperados com mimos e equipamentos eletrônicos para seus pós-bebês, talvez devessem se voltar para a inteligência e seus infindáveis desdobramentos.
Mas Gulliver e os Houyhnhnms não existiram, e se foi uma ficção, tudo magicamente se torna ficção. Nesta carcomida e mal iluminada realidade, todos são lindos, jovens, vitoriosos, botocados e repletos de certezas e verdades. Apenas um verdadeiro educador não esteja nem aí para marmanjos executivos com suas indefectíveis roupas de aeroporto de Congonhas e verdades absolutas, mas se preocupe com as crianças, a parcela inocente que está sendo ‘educada’ por cavalos inteligentes.
PS. Nossas desculpas ao uso dos cavalos inteligentes de Gulliver. A poesia deles os salva lindamente.
Jean Menezes de Aguiar
Categorias:Filosofia

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