Crença – nossa invenção mais extraordinária

A. Einstein no Brasil

‘Há extraterrestres escondidos na Terra’. Qual a sua reação imediata? Pausa. Será que você tem a mesma reação para outras situações de mistério?

A frase do título é do historiador inglês Matthew Kneale, nome de seu livro. Este artiguinho aqui, por seu turno, não invoca qualquer poder sobrenatural. Baseia-se apenas em mortalíssimos filósofos e cientistas em geral.

A crença é formidável, se, nalguns casos, não fosse ‘complicada’. Ela tem o poder de absolver qualquer um por qualquer coisa dita, assumindo, ela própria, integral responsabilidade.  É como se todo mundo fosse obrigado a perdoar fés, delírios, mitologias, sobrenaturalismos, duendes e capetas. Ou também terraplanismos, antivacinismos, golpismos e outras travas cognitivas. Desde que apelidadas de fé.

Nunca houve passaporte social mais poderoso para a credulidade humana, de algo invisível ou não racionalmente provado, do que a fé. Como um passe de mágica, a pessoa se legitima a tudo. Até à glossolalia de TV, o speaking in tongues, o falar em línguas, um canal direto com deuses, espíritos e santos. É muito poder.

As crenças místicas ou sobrenaturais, ligadas a santos e divindades, por exemplo Alá, Buda, Deus, Jesus, Maomé ou Oxalá – em ordem alfabética-, são as mais imponentes. Algumas bem ciumentas. Neste segmento, muitos que têm o seu deus de preferência, excluem, preconceituosamente, o deus e a crença do vizinho, se forem diferentes. Torna-se o deus rival. Aqui insere-se outra categorização discriminatória. A crença em divindades totais e o descaso pelas parciais. Deus ou Alá serão incomparáveis com divindades parciais, como Iemanjá. Muitos quererão que os deuses totais não sejam uma mera crença ‘comum’, mas um fato (…) universal (…), afinal para eles fizeram-se templos faraônicos, nomearam-se papas etc. Exatamente pelos deuses, de quebra, nunca cessaram os milhares assassinatos pelo mundo. Mas isto é efeito colateral, não é verdade? Já a cênica Iemanjá quererão que seja um tipo de brincadeira de pular 17 ondinhas na praia, na virada de ano. Então tá.

Na teoria do deus falso, há diferenças vividas, inclusive, próprias do mesmo deus. Fundamentalistas vingativos aderidos a Jesus continuam não aceitando os automóveis estacionados às portas de centros espíritas, cujos praticantes têm o mesmo Jesus, riscando as latarias dos carros a ferro de chaves de Corsas, Fiestas e similares, com a ideoemulação SJS. É a lógica do ‘o meu deus é o verdadeiro, o seu é falso’, uma ciumenta malandragem preconceituosa que cria o clube dos nossos, e de quebra, em muitos casos, o ódio aos de fora.

Nesta polarização, a própria fé, em si, se torna paradoxal e perde absolutividade. Assim, aceita-se a fé do deus certo, mas nega-se a outra, uma que terá que ser do deus errado. E o mundo não será organizado em díade, entre quem crê e quem não crê, mas em tríade, com as 2 fés rivalizantes, mais a turma dos ateus, largada no mundo e sem um poderoso deus a proteger de tudo com sua onisciência e poder infinito.

Aqui, nova malandragem. Alguns crentes quererão que ateus ‘creiam’ que Deus não existe. Isso gera uma equivalência cômoda, ainda que inteiramente errada, dada a assimetria entre as premissas. É como se a existência de divindades fosse um fato que dispensasse prova, e não uma crença. Sabe-se, desde sempre, que quem acredita em algum mistério – qualquer que seja- é que tem que provar a existência de seu objeto crencial. Mas alguns querem inverter o jogo. Exigir, então, que se prove que Alá ou Deus não existem. Como se a prova negativa fosse uma possibilidade. É o ‘te peguei’ do néscio.

Nas crenças sobrenaturais, há também hierarquia. A das crenças respeitáveis e das crenças ‘zombáveis’. O psiquiatra italiano Pier Vincenzo Piazza, na obra Homo Biologicus, sintetiza ‘Não há nenhuma prova racional da existência de uma essência imaterial’. Pois é, nunca houve. O dado e a verdade ‘revelados’, próprios do conhecimento teológico, conquanto até pertençam ao conceito de cultura, nunca puderam ser aceitos por nenhum metodólogo ou cientista como prova racional.

Exemplos de crenças ‘zombáveis’ há, dentro das próprias religiões, pelos próprios praticantes. Converse-se, por exemplo, com um padre verdadeiramente culto – não é difícil-, sobre o Céu, em seu sentido originário, uma invenção de 4 mil anos; ou o Paraíso; o Purgatório; ou a própria Alma em sentido estrito de um ser extracorpóreo, e provavelmente este intelectual do sobrenaturalismo recomendará, respeitosamente, que o interlocutor ‘relativize’ esses conceitos. Dirá que algumas coisas ‘mudaram’ no curso da humanidade. Pois é, com Kepler, não se acredita mais num Céu não astronômico. O conceito ganhou certo lirismo, mesmo dentro da crença religiosa, definitivamente afetado pela ciência.

Quando Marx e Engels disseram que ‘a religião é o ópio do povo’, havia uma acusação ao obscurantismo. Mas repare-se, em diversos pensadores seniores vê-se a mesmíssima compreensão, não apenas quando a religião ‘torna suportável a infeliz consciência da servidão’, conforme Moses Hess, mas no sentido propriamente marxista, com igual relevância em Kant, J. G. Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e Heinrich Heine.

O aspecto importante de se investigar na crença, como vem sendo trabalhada, por exemplo em países neoevangelizados como Estados Unidos e Brasil, não é, de modo algum, um punitivismo ou uma ridicularização do agente. O fato é que há 2 crenças: a crédula, íntima e portátil, e por isso, garantida democraticamente como um direito fundamental de qualquer pessoa; e uma outra. A situação se complica com esta outra, a crença marqueteiro-evangelizante; invasiva na esfera do outro; comercialmente catequizante e financeirística. Ela ataca em festas, aniversários, eventos e comemorações com imposições de ajoelhamentos corpóreos, passes, rezas & orações, além de súplicas impositivamente a todos com olhos fechados, dirigidas ao sobrenatural.

Uma ótima organização temática deste aspecto da crença é feita pelo teólogo Osvaldo Luiz Ribeiro, do canal A Tenda do Necromante, em texto primoroso, defendendo a fé não proselitista e não missionária, ensinando que esta não faz mal a ninguém, e a pessoa quer apenas acreditar naquilo. Em compensação, há que se identificar ‘certo’ farisaísmo da fé missionária, então soberba e metida à besta, que acha que só ela descobriu segredos, mistérios, revelações e só ela sabe das coisas. Ou simplesmente sabe de tudo que importa, de biologia à física, de química à astronomia. Uau.

Por seu turno, o ateu aparece como um resignado ‘miserável’, que só tem a seu favor o Esclarecimento. Não tem Purgatório como um estímulo-desafio para melhorar nesta vida terrena de boletos. Também não tem um deus customizado por um mentoringo-influencer ensinando a bater metas. Nem tem o Céu ou Paraíso, com virgens lascivas e à disposição para ultimar um sagrado machismo patético. Inferno com brasas e capetas? Só uma engarrafada Linha Vermelha no Rio, ou o Centro de São Paulo, furtador de 1000 celulares dia.

O tema da crença religiosa continua a atrair visível fundamentalismo. O filósofo alemão Peter Sloterdijk (Ira e Tempo), mostra a agudização histórica iniciada nos Estados Unidos, com evangélicos trincados repetindo que a visão do mundo moderno pelas ciências da natureza era obra do diabo. Veja que criatividade. Passa por judeus ortodoxos – e não só estes- insistindo numa rabinocracia em Israel totalmente discriminatória, como persiste até o dia de hoje-, ao invés de uma democracia obviamente laica e igualitária a todos; chegando, por fim, aos fenômenos islamistas mais recentes.

Na ciência, o ‘acreditar’ é simplesmente o antagônico de qualquer coisa que se queira minimamente científica. A crença jamais é um fator utilizável por qualquer método científico. As passagens são infinitas. Guilherme de Ockham, já no século XIV, resumia que ‘ciência e religião são fundamental e irrevogavelmente incompatíveis’.

Em 1936, Albert Einstein respondeu a uma famosa carta da menina Phyllis, de uma escola dominical, que lhe indagou ‘Cientistas rezam?’. Einstein explicou que ‘os cientistas acreditam que toda ocorrência, incluindo os fatos da vida humana, deve-se às leis da natureza’, e à frente negou o valor de orações e sobrenaturalismos. Já em 1954, um ano antes de morrer, em outra carta, a um autor de livro, Eric Gutkin, explicou didaticamente: ‘A palavra Deus é para mim apenas a expressão e o produto das fraquezas humanas; a Bíblia é apenas um conjunto de lendas respeitáveis, porém primitivas e muito infantis.’

Estas indisfarçáveis palavras de Einstein são um norte, para qualquer um que busque esclarecimentos racionais, objetivos e metodológicos, sobre qualquer coisa.

Ninguém é obrigado a gostar de nada, a ser deste ou daquele modo, acreditar neste ou naquele deus, ou em deus nenhum. Todas as democracias garantem plena liberdade de religiões, seitas, crenças, divindades e liturgias.

Democracias, obviamente livres, estão sendo microatacadas, com bancadas políticas mancomunadas e seus indisfarçáveis planos de poder. O auge da picaretagem faith healing, ou curas milagrosas, aliada às vendas ‘sagradas’ de tijolo a cueca ungida, máscara invisível blindadora de Covid, fronha milagrosa, água mineral abençoada, continuam criando bolsões avessos à ciência e ao Esclarecimento.

A crença religiosa como espécie de commodity, ou meta a se bater em empresas religiosas aferidas pelo número de associados ou praticantes, passou a ser, realmente, uma das maiores manifestações humanas. Enquanto isto, por exemplo, o trânsito está cada vez mais agressivo, as famílias mais dissociadas, as vizinhanças mais reclusas, os almoços de domingo mais mentirosos em política porque se não o primo direitista enfia a mão na cara do primo esquerdista ou vice versa. E a vida urbana cada vez menos educada, e as amizades cada vez mais frágeis.

‘Nada mais raro entre santos e moralistas que a retidão’, advertia Nietzsche. Ninguém necessita de algum deus para ser correto ou ético, ainda que crenças e deuses sejam, verdadeiramente, importante para tantas pessoas.

Jean Menezes de Aguiar



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