
A seção de Santa Catarina da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da Comissão Especial pelo Porte de Arma à Advocacia, presidida pelo advogado Luís Eduardo de Quadros, convidou-me para uma palestra, neste outubro de 2025, sobre o tema objeto da Comissão. Valem algumas ideias e divagações.
O assunto do porte de arma, passou a ser um tema delicado, sabendo-se que não é a regra em países evoluídos. Por outro lado, arma de fogo não é o assunto fantasmático, ou, como querem decretar alguns autoritários de uma paz identitária, destruidor da sociedade. Nada disso.
No Brasil há uma divisão um tanto quanto cínica da questão do porte de arma. Muitos, do Estado, têm, automaticamente, direito a porte de arma, estejam ou não em atividade de risco. Naturalmente, veem-se malabarismos para justificar a coisa. Já para o cidadão de fora do Estado, parecem ser quatro os modos de obtenção de porte de arma: sorte; amizade com a pessoa certa; dinheiro e poder pessoal; e, por último, aceitação da tal ‘efetiva necessidade’, quase uma charada existente na lei, sempre ao sabor do talante de algum ‘intérprete’.
No que tange ao Direito, o porte de arma para advogados é tema com contornos interessantes. A Constituição da República, no artigo 133, chancela ser o advogado “indispensável à administração da justiça”, garantindo sua “inviolabilidade”, situação única no mundo, não existente em nenhuma outra Constituição. Já o Estatuto da Advocacia, lei federal 8906, no art. 6º, equipara, impositivamente, os três atores principais do processo judicial: o advogado, o juiz e o membro do MP. E precisamente aí cabem algumas observações.
Rapidamente, juiz não seria funcionário público, mas órgão de Poder, estritamente, agente político (Di Pietro, Hely e outros). Membros do MP também acabaram se equiparando a agente político, principalmente quando, em 1988, o MP saiu do Poder Executivo e se tornou um órgão constitucional, característica única e exclusiva do MP. Sim, o MP é o único órgão ‘tratado’, e não apenas ‘referido’, na Constituição da República, ao lado dos três Poderes, igualmente tratados. A diferença epistemológica entre tratamento, como assento originário diretamente na Carta, e referência, como mera indicação, é reveladora de graus de importância no ordenamento jurídico. Isso alterou a natureza jurídica do MP, vincando sua fisionomia, então, constitucional, e não apenas legal, ainda que, por óbvio, não seja o tal quarto Poder. Nunca existiu isso.
Todos os outros são departamentos ou órgãos apenas ‘referidos’ na Constituição. Assim, por exemplo, o Departamento de Polícia Federal, “DPF”, que se esforça para esconder o nome “Departamento”, os Corpos de Bombeiro, as Polícia Civis, as Guardas Municipais e o que mais houver, seja civil ou militar. Todos aí pertencem e obedecem, sempre, a um Poder. Só o MP está fora.
Assim, o advogado foi equiparado não apenas a um funcionário público, mas a um agente político, exercente de atividade de soberania, a jurisdição. Com isso, reafirmou-se a trifuncionalidade do processo, nas figuras do juiz, advogado e membro do MP. Por outro lado, tal importância não é por personalismos, ou subjetiva, dos atores em si, mas pelas atividades, que, sim, relacionam-se diretamente com a soberania: a jurisdição, a acusação e a defesa. As três – e só elas-, no modelo brasileiro, são tipicamente constitucionais como “funções essenciais à justiça”. [Vale a nota de que na famosa obra TGP, Cintra, Grinover e Dinamarco, 8ª ed., 1991, p. 266, registram-se as 5 funções do MP, situação, todavia, não repetida na 33ª edição, de 2021].
Com esta epistemologia, quando a lei federal equipara o advogado a magistrado, dá-se certa fricção nalgumas relações.
No Estatuto da Advocacia, lei federal, então, três detalhes chamam a atenção no artigo 6º: a) não haver “hierarquia nem subordinação” entre os atores processuais; b) o dever legal imposto até às autoridades para com o advogado; e c) a preocupação da lei inclusive com a situação física do advogado em relação ao juiz, impondo ao Judiciário que ambos estejam, nas audiências, em igual plano topográfico, clivando qualquer imagem de pretensa superioridade de quem quer que seja em relação ao advogado. Há quem não acredite nas palavras da lei, mas crenças não se discute.
Advogados seniores levam essas disposições legais muito a sério, não admitindo, por exemplo, o que houve no julgamento do ex-presidente, quando a ministra passou um pito num advogado. Wálter Maierovitch, em entrevista no Uol, disse, com toda propriedade, que a ministra deu sorte, porque se pegasse um causídico raiz, não se curvaria àquele ‘ai ai ai’. Mas estilos não se discutem.
Todo esse caldo cultural de igualdade a fórceps entre advogado e juiz, autoriza ideias. Uma delas a do porte de arma, por equiparação: se juiz tem, advogado tem que ter também, garantem muitos. Isso procede por um lado e é equivocado por outro. A episteme da equiparação, numa interpretação teleológica, jamais disse respeito a porte de arma funcional, e sim à liberdade que a Defesa (com d maiúsculo, verdadeira entidade constitucional) precisa ter e gozar para proteger a pessoa humana do Estado. Por outro lado, a discussão do porte de arma para o advogado, principalmente o criminal, não é em nada absurda, e sim, muito mais ciúme de quem tem a caneta deferitória à mão.
Por outro lado, se fosse um direito absoluto, numa equiparação ex vi legis, a OAB já teria cobrado isso no Supremo, há anos, para os advogados. Não é. Mas também não é um pleito absurdo, haja vista existir, até, um projeto de lei neste sentido. Talvez o porte de arma automático para todos os advogados do país seja o mesmo equívoco que o automático para todos os juízes e membros do MP. O mais prudente seriam filtros objetivos, que, todavia, estivessem fora do personalismo idiossincrático da figura do delegado de polícia responsável pela concessão do porte.
Profissionais que lidam, comprovadamente, com Direito Penal – este seria um primeiro filtro-, necessitam fortemente portar uma arma para situações de exclusiva legítima defesa. Estes convivem com pessoas cujo lastro ético, em muitos casos, é nulo, e enganos, por exemplo, podem gerar vinganças de morte. Neste sentido não poucos advogados têm sido mortos, e, todavia, o Estado nada faz. Outros filtros há e podem existir, só o Estado lançar mão de alguma inteligência. O problema é o sistema, nalguns casos, ornado por uma burrice vaidosa.
A advocacia se tornou, com a Constituição de 1988, a única profissão constitucionalizada, havendo um incremento, no quantum de natureza jurídica pública, ou melhor, constitucional. E isto se deu pela necessidade política (constitucional) – e não apenas legal- de a advocacia ser considerada indispensável a uma atividade típica da soberania, a jurisdição.
Que o Estatuto da Advocacia impôs equiparação simétrica entre os três atores do processo, não há dúvida. Outra questão é, primeiro interpretar teleologicamente esta simetria, para verificar se ela, potencialmente, se estende à questão concreta do porte de arma. Com todas as ressalvas feitas acima, pela própria Constituição, e uma equiparação indisfarçável da profissão do advogado, fica, efetivamente facilitada a defesa do porte de arma para profissionais que, nesta conjuntura, estejam expostos às dificuldades do mister da profissão. Sem as garantias, por exemplo, infinitas concedidas aos agentes públicos.
A crítica que fica é a Constituição ter criado, por um lado, uma simetria nominal e mesmo substancial, no processo, entre seus atores, mas, independentemente da questão do porte de arma, por outro, não contemplar a advocacia com um mínimo sistema protetivo, disparável a pedido do interessado, ou melhor, necessitado, como ocorre com juízes e promotores, em casos reais de dificuldade. Com esta lacuna, a situação do porte de arma se legitima amplamente.
Jean Menezes de Aguiar.
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