
Primeiro Tema: arma desmuniciada em casa. Textos legais, como qualquer obra humana, erram. Pessoas também leem os enunciados legais de modo torto, inclusive os positivistas, com suas certezas portáteis, e só enxergam customizadamente aos seus interesses.
O paradoxal decreto 11.615/23 obriga o CAC, caçador, atirador e colecionador, precisamente alguém com experiência e habilidade em armamento, a manter sua arma em casa, desmuniciada, além de trancafiada num lugar seguro. É só mais uma exorbitância moralista da lei, relativamente à gestão de cada pessoa, no trato de suas coisas, utensílios e bugigangas, mas aí, invasivamente, no interior da residência. Como se pertences particulares não fossem problema ou responsabilidade de cada um, e, repita-se, dentro de casa, principiologicamente o “asilo inviolável do indivíduo”, conforme a Constituição da República, art. 5º, inciso XI.
O primeiro engano aí, de muitos, é com a crença de que a propriedade de uma arma seja um favor do Estado. Mesmo que se trate de calibres isso ou aquilo, permitidos ou proibidos – outro autoritarismo de um Estado provinciano. Já ensina o grande Sergio Ferraz, Tratado de Direito Administrativo Brasileiro, v. 1, p. 28, que “um Estado com amplos poderes é um mal.”
Arma é um bem, transmissível por herança, ligado ao princípio constitucional – art. 170, inciso II- da propriedade privada, como um automóvel ou um relógio. Jamais, por exemplo, podendo ser expropriado, como crédulos já apavoraram ingênuos pela internet. A arma, apenas, é registrada no Estado, não como a geladeira, mas sim, como o automóvel. Esta natureza jurídica, dominial, começa a expor como invasiva qualquer vontade oficial, numa então outorga preconceituosa do Estado do tipo – você eu permito ter arma, já você outro, não permito-.
São 3 conceitos jurídicos ligados à arma que não podem ser confundidos. Licença, autorização e registro. Adilson Abreu Dallari[1], especializou o tema às armas, utilizando Hely Lopes Meirelles e Celso Antônio Bandeira de Mello, podendo-se ainda trazer Di Petro[2] e outros.
Em Dallari vê-se: 1. Licença é ato administrativo, vinculado e definitivo, com presunção de definitividade (Hely Lopes) desde que o interessado atenda aos requisitos legais, outorgando-lhe direito subjetivo. A licença, a rigor, se extingue com a aquisição da arma (Dallari e Bandeira de Mello). O exemplo de licença: a compra da arma. 2. Já o registro deve ser mantido meramente para comprovar a licitude da compra da arma, é outra categoria. 3. Autorização é ato administrativo discricionário, aqui sim. Seu exemplo clássico: o porte de arma.
Assim, a licença para compra (propriedade, e não mera posse) da arma não pode exorbitar, jamais, à mera verificação na aquisição de arma, por qualquer pessoa que cumpra os requisitos legais. Se cumpridos os requisitos, há, sim, direito subjetivo à compra da arma, numa loja comercial, antigamente a querida Mesbla. Aí jamais será a tal autorização precária.
Afora isso acima, há outro desdobramento jurídico, ligado agora ao Direito Penal. A imposição da guarda da arma em residência, trancada e desmuniciada – imprestável-, derrogaria, de fato, “um” exercício legítimo e necessário de episódica legítima defesa (LD), doméstica. Assim, a pessoa tem legalmente uma arma em casa, vê sua residência invadida por um bandido, e, pela lógica da arma imprestável, é obrigado a sofrer abusos, violência ou até morte, com sua família, não podendo se defender, mas repare-se, em casa, legalmente. A estupidez jurídica da construção, com esta “inteligência gerencial”, encontrável “até em uma toupeira”, nas palavras de Marco Casanova, no livro A Persistência da Burrice, é severa.
Como não pode haver, por óbvio, simetria eficacial no plano jurídico entre LD e pequenas normas de uma tal ortopedia moral, administrativas, devendo vencer a LD qualquer coisa que se supuser, o fundamento fático da arma hábil à defesa prevista em lei, em casa (!), se mostra inultrapassável, legítimo e, no caso, tragicamente lógico.
Se a parte do Decreto que impõe a arma imprestável, em casa, for, exclusivamente, restrita à evitação de acesso a menores e deficientes, nenhuma crítica. Mas não é, porque a arma igualmente legal de quem não é CAC, não atrai este frenesi patrulhador: pode ser guardada municiada em casa. A tal lógica da arma desmuniciada – e contrária ao Direito- até para não poder ser usada em LD, ou seja, a pessoa tem que morrer mas não pode se defender com aquela arma, invade, olímpica, a última categoria humana, em Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana: o inteligente, o vulnerável, o bandido e o estúpido.
Assim, sendo a LD um direito até natural, se se quiser apelar ao romantismo jurídico, não pode um mero decreto – e nem qualquer lei- restringi-la, num trágico caso em que ela se imponha como necessária.
Repare-se que há no decreto tratamento a que explosivos sejam guardados desmuniciados, matéria obviamente diferente e em nada coincidente com um revólver ou espingarda.
De aí, um primeiro paradoxo: a proibição da arma municiada em casa podendo não impedir a violência ou a morte contra proprietário da arma, vez que inacessível à LD.
E o segundo paradoxo, ou nova torção da inteligência: qualquer pessoa proprietária de uma arma legal, pode tê-la, em casa, municiada e pronta para defesa; mas precisamente o CAC, treinado e com experiência em armamento e tiro, tem que manter sua arma desmuniciada e trancafiada.
A conclusão jurídica óbvia é que se o CAC fizer uso de sua arma, em casa, numa regular situação de LD, jamais algum fiscal da moral decretal de plantão poderá se insurgir, no sentido de que o CAC e sua família tinham que morrer, mas nunca cometer o sacrilégio administrativo de usar aquela arma então amaldiçoada pelo decreto.
Segundo Tema. Admita-se, juridicamente mais difícil: arma de CAC desmuniciada na rua. O trânsito da arma, no deslocamento do CAC para regular atividade de tiro, por exemplo, no suntuoso estande de tiro da deslumbrante sede do Fluminense Footbal Clube, existente há mais de um século, parede colada com a residência oficial do governador do Rio de Janeiro, nas Laranjeiras.
O termo “desmuniciada”, nesta finalidade, aparece no decreto, 11.615, em 8 enunciados, e na Instrução Normativa 311/2025, da Polícia Federal, em 7. Com tantas reiterações, cuidados e técnicas, não se há dizer que qualquer coisa aí foi “esquecida”.
No decreto, a expressão “arma desmuniciada” está nos artigos 2º, VIII, XXVII e XXXIV; 15, VIII; 21, parágrafo único; 33, § 1º; 38, II; 38-E, parágrafo único; e 73, § 3º. Já na IN, nos artigos 2º, X e XXVIII; 18, f; 38, §1º; 44, VI; 46, parágrafo único; e 54, VIII.
Tanto num como noutro texto, houve preocupação nominal com o “conceito” de arma desmuniciada, o que, logicamente, deve ser cumprido. A base em ambos os textos tem a seguinte redação:
Decreto: “Art. 2º. Para fins do disposto neste Decreto, considera-se: VIII – arma de fogo desmuniciada – arma de fogo sem munição no tambor, no caso de revólver, ou sem carregador e sem munição na câmara de explosão, no caso de arma semiautomática ou automática.”
Instrução normativa: “Art. 2º. Para os fins do disposto nesta Instrução Normativa, considera-se: X – arma de fogo desmuniciada: arma de fogo sem munição no tambor, no caso de revólver, ou sem carregador e sem munição na câmara de explosão, no caso de arma semiautomática ou automática.”
São não apenas um, mas dois diplomas, um inclusive especializado por polícia, com as mesmas exigências: para revólver, uma especificidade técnica: desmuniciado é 1) sem munição no tambor. Para pistola, duas especificidades técnicas: desmuniciado é 1) sem carregador e 2) sem munição na câmara. Assim, por óbvio, quem cumprir essas e somente essas (!) determinações técnicas – tambor vazio do revólver, e pistola sem carregador e sem munição na câmara- não poderá, jamais, ser criminalizado.
Parece haver, aí, certo conflito em interpretação quanto à norma penal ser ou não em branco, relativamente à expressão “arma desmuniciada”. Nucci[3], registra que quando se possa recorrer, em simples consulta, a outro artigo que esclarece alguma lacuna, não há norma penal em branco. Ocorre que, aqui, há duas situações, não há lacuna nos artigos 2º, e há hierarquia entre os usos da expressão, quando, tanto no decreto quanto na IN, o termo “arma desmuniciada”, inaugura artigos conceituantes[4], e por isso, principiológicos, – os artigos 2º- com os termos “para fins de” e “considera-se”. Mesmo com a redação do art. art. 21, parágrafo único, do decreto 11.615, por exemplo, que se refere à guia de tráfego não autorizar o uso da arma – o objeto aqui é o uso, e não a forma desmuniciada-, o conceito de arma desmuniciada ocupa artigo expressamente conceituante, os arts. 2º, que, uma vez cumpridos, não podem gerar criminalização do agente.
Assim, se o CAC é parado numa blitz[5], que, como se sabe, não pode, jamais, proceder genericamente a buscas pessoais – CPP, art. 244, e que ainda restringe a fundada suspeita à “arma proibida”-, o que não é o caso do CAC, a menos que ele esteja descumprindo os técnicos artigos 2º do decreto e da IN, quanto à arma desmuniciada, se ele prontamente apresentar a arma desmuniciada, como exige o art. 2º, e estiver com documentação em dia, cessa, juridicamente, qualquer outro interesse, curiosidade ou sanha de integrantes da blitz. Esta conclusão tira noite de sono das polícias que querem ter o controle do ir e vir do cidadão nas ruas, vasculhando-se-lhes pertences, bolsas e interiores de veículos. Por isso tantas muitas centenas de habeas corpus do STJ na matéria de busca pessoal enfurecem as polícias, sobre buscas pessoais escancaradamente ilegais por parte dos órgãos de segurança, que não cessam no país.
Assim, atendidos os técnicos e precisos arts. 2º do decreto e da IN nas 3 específicas exigências funcionais sobre o conceito de arma desmuniciada, para revolver, tambor vazio, e para pistola, arma sem carregador e sem munição na câmara, o resto será arbítrio estatal.
Jean Menezes de Aguiar
[1] https://sbdp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/artigos-adilson-abreu-dallari-renovacao-do-registro-de-armas-de-fogo.pdf
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 35 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 236.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal anotado. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, art. 3º, p. 43.
[4] Como se sabe, não é regra a lei conceituar, a não ser quando necessite, excepcionalmente, tratar de matéria específica, o que tanto é feito de modo totalmente preciso, quanto gera superioridade em relação a outros enunciados, para aquela situação.
[5] Não existe, no Direito Processual Penal a figura da “abordagem policial” como instituto jurídico, e como as polícias sonham criar, como se pudessem. O que há é o instituto processual da Busca Pessoal, que jamais acoberta curiosidades policiais.
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