Pseudociência e as delícias dos espertalhões

‘Diga-me quantas pseudociências você compra e dir-lhe-ei quanto vale a sua filosofia da ciência.’ Mario Bunge, Dicionário de Filosofia, verbete ‘pseudociência’.

(Considero cada um dos muitos pensadores e cientistas citados neste artigo, propositadamente para meus alunos e a pedido deles, merecedores de grande atenção com seus livros deslumbrantes.)

Cientistas, filósofos da ciência e historiadores da ciência – que trinca!- sempre resmungaram, deitaram e rolaram contra as ondas malandras e lucrativas, há séculos, de quem invoca o santo nome da deidade em vão: a Ciência. Sim, ela mesmo. Para muitos, o equivalente do sagrado, sem o misticismo do dogma. Tudo conforme o filósofo Guilherme de Ockham, século XIII; ‘ciência e religião são fundamental e irrevogavelmente incompatíveis’ (A Navalha de Ockham, J. McFadden). Quanto prazer ideológico é uma frase organizatória assim. Tentou-se certo armistício entre essas ‘tradições’, ciência e religião, na instigante expressão de Paul Feyerabend (A Ciência em uma Sociedade Livre), mas soberanias costumam ter suas razões para não ceder umas às outras.

Da trinca, sempre houve unanimidade com o uso do santo nome em vão. Bunge, citado acima, conceituando ‘anarquismo’ no viés epistemológica, mostra que, numa visão cética e radical, todas as teorias e disciplinas são equivalentes. Assim e pelo menos aí, haverá lugar para todo mundo, sejam cientistas, fraudadores ou fanfarrões-glutões. Em consequência, haverá as plateias específicas.

Os usurpadores da ciência costumam ser, invariavelmente, ótimos falantes sociais, agora watsápperes, influênceres e youtúberes. De quebra, muitos são PhDs, ainda que por correspondência, não importa. É bem aquele tipo referido por Schopenhauer (Aforismos) – ‘o que torna o homem sociável é a sua pobreza interior’. Publicam livros, lucrativíssimos. De quebra, muitos vivem em encontros-summits, a nova onda, quase que para a salvação da humanidade. Seguindo a regra de que todo estelionatário é simpático, se quer alguém para alegrar um churrasco de domingo, esta gente é a mais indicada. Ouvir histórias e mentiras continua sendo um prazer.

De volta à velha trinca, os atritos internos também existem e são um espetáculo para iniciados. Já se viu cientista, em livro, como um rabugentamente maravilhoso Ernst Mayr (Isto é Biologia), para quem ‘há uma ignorância deplorável, entre a maioria das pessoas, a respeito até dos fatos mais simples da ciência’, resmungando de filósofo da ciência dizendo que ‘agora quererão ditar o que se tem que fazer na bancada’. A que os filósofos da ciência sorriem invocando uma exclusividade do pensar científico. Não é um espetáculo?

Prigogine e Stengers (Entre o Tempo e a Eternidade) cobram seriamente a retomada do diálogo entre filosofia e ciência que se rompeu a partir do final do século XVIII. Mas, abstraídas as diatribes internas e epistêmicas de alto nível entre estudiosos de verdade, o fato é que há outras, externas, e bem mundanas. Geralmente capitaneadas pela famosa literatura ‘Como’. Aqueles livros tesudos de autoajuda que sempre começam com a palavra ‘como’: como trair o chefe sem ser descoberto; como enriquecer em 8 dias; como falar chinês dormindo, e tantos outros livros de check-in de aeroporto.

O ruim das enganações, pelo menos para os anarquistas, é que os modismos passam e são descobertos, precisamente porque entram na ‘ciência’, com passaporte falsificado, e algum estudioso chato desmonta a safadeza, ou a alegria. Foi mais ou menos assim com alguns musts de décadas atrás que eram a sensação de momento, como a reengenharia, qualidade total e, mais recentemente, o troço do ‘quântico’. Escrevi, meio resmungantemente, sobre esta área, a espertalhice quântica, no artigo ‘Coach quântico do bem e outras arapucas’ https://observatoriogeral.com/2020/06/05/coach-quantico-do-bem-e-outras-arapucas/. Arrolo ali umas 35 novas atividades ou profissões ‘quânticas’ – olha aí rapaziada de ‘carreira’-, que passaram a ser um sucesso numa pseudociência lisérgica pega-trouxa, com as tralhas formidáveis da ‘energia’ e outras ‘vibrações’ certamente ‘cósmicas’ etc.

Faça-se a ressalva da seriedade do uso do termo vibração, ao lado de temperatura e equilíbrio, empregados pelo filósofo alemão Fritz Heinemann (A Filosofia no Século XX), espetacularmente, como três novos sentidos humanos, possibilidade que continua a pasmar cientistas. Vê-se que o problema não será o termo, o nome ou a palavra, mas o uso ou funcionalidade que podem ser vulgarizados ou não. Mais ou menos o que Prigogine (O Fim das Certezas) cuida quando diz que a irreversibilidade exige uma extensão da dinâmica. E ele próprio questiona a expressão forte, dizendo que ‘não se trata de sugerir que termos novos sejam acrescentados às equações da dinâmica’. Termos não rompem a simetria das equações. Mas novas equações criam, perfeitamente, termos novos, o que não é, sabe-se, jamais o caso da pseudociência.

Uma das ‘funcionalidades’ malandras dos usurpadores da Ciência será precisamente pegar o termo, que o próprio não domina, por exemplo ‘quântico’, e arranjar uma falsa, falsíssima funcionalidade para a expressão. Carl Sagan (O Mundo Assombrado Pelos Demônios), calcula em 15 anos o tempo necessário para se compreender a mecânica quântica seriamente, envolvendo 15 disciplinas, coisinhas ‘bobas’, como cálculo diferencial e integral, cálculo vetorial, álgebra matricial etc. Mas quem precisa de rigores, não é verdade?

O bom é que a modernidade-jovem, ou a velharada-conservadora não precisam mais de Ciência, não dão valor a ela e o resto de respeito que ela conseguia ter, com esses aí, foi para o lixo. É como se a vida – as pessoas- tivesse descoberto que não precisa saber Ciência para viver. E talvez não precise mesmo.

Quando li Feyerabend a primeira vez, há 30 anos, fiquei assustado com aquela anarquia científica e da razão. Certamente hoje em dia diria que o cara talvez fosse um profeta, de uma sociedade ostentação-boçalidade – ou apenas alegre!- que renega o estudo, não por uma estupidez intencional, mas pela descoberta do Instagram. Algo meio Nicolau de Cusa referido por Alexandre Koyré (Do Mundo Fechado ao Universo Infinito), mas repare-se, elogiando o intelecto, na alusão cusana: ‘o intelecto é o único agente capaz de praticar a douta ignorância’.

Com ou sem Ciência todos vivem, e vai para a Ciência quem quiser. Talvez isso fizesse cessar cobranças e supostas superioridades da trinca lá de cima, com as sociedades, ainda que no plano da Educação.

Saber que Jane Goodall, a partir dos trabalhos de 1960, reintroduziu o chimpanzé no modelo de ‘humanidade’, referência de Jorge Martínez-Contreras (Filosofia da Biologia), é algo triplamente espetacular. Primeiro porque Goodall merece, como a primatóloga de todos nós, o crédito. Segundo, porque o chimpanzé junto a nós nos honra, igualmente como primatas, seriamente. Terceiro porque precisamos aprender com eles, conforme outro biólogo, Frans de Wall (A Era da Empatia), ensina. Temos que melhorar socialmente, não é possível que continuemos, por exemplo, a discutir vacinas, o tosco do tosco.

Parafraseando o jornalista espetacularmente azedo H. L. Mencken (O Livro dos Insultos), há mais de um século, desde quando o primeiro gorila ‘avançado’ vestiu cuecas, franziu a testa e saiu por aí dando conferências, a coisa desandou.

Jean Menezes de Aguiar.



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