Enganadores de um lado, e desesperados por uma vida material melhor do outro, têm uma coisa em comum: são infinitos. Junte-se as duas pontas e a trapaça dos primeiros sobre os segundos vencerá fácil.
Mamíferos analfabetos em ciência, e mais ainda em Física, inventaram a safadeza do ‘coach quântico’ e outras arapucas. A lista de ‘produtos’ à venda na internet é imensa.
Coach quântico; oração quântica; reik quântico; acupuntura quântica; sal quântico; água quântica; telepatia quântica; Jesus quântico; terapia alternativa quântica; ressonância harmônica; lei da atração; mandar coisas para o universo e receber de volta; frequência alta e baixa do corpo; vibrações energéticas do corpo; conexão energética; reequilíbrio energético; energia; campo eletromagnético das pessoas; cura de problemas; conversa com alienígenas; iluminação pessoal; conversa telepática; thetahealing e os thetahealers; reprogramação de DNA; charlatanismo epigenético; multidimensionalidade do corpo; alteração do nível subatômico do corpo por meio da aproximação das mãos; dupla fenda como fundamento de cura; consciência para mudar a realidade física; biokinesis; design inteligente; mentorização quântica, mentorização energética etc.
É claro que disputando pau a pau, vêm os ‘evangélicos televisivos de terno brilhante e cabelo bufante tirando dinheiro dos ingênuos (‘Deus quer que você doe até doer’)’, como demonstra o biólogo Richard Dawkins, no livro Deus um Delírio, p. 24.
Também, os quânticos e energéticos da lista maldita acima pertencem a um tipo de gente que se autointitula ‘do bem’ – expressãozinha calhorda sob medida para enganar incautos e vender qualquer coisa, de tamanco a suco de laranja-. É um povo que no pós-antigamente seria ‘hippie’, quando a fumaça do marijuanado movimento já tinha sumido. Depois passou a ser ‘descolado’. Agora é quântico. Ao modelito ‘doutorado em gratidão’, irc…
Do grande rol de enganações garimpado na internet, tome-se por todas o tal do Coach quântico, em misto de necessário estrangeirismo pretensamente ‘chique’ – ou será suburbano?-, com ‘científico’ (há aspas!); bem, dane-se lá o que isso queira ser.
Mas, ‘quântico’? Sim, a imponente qualificadora da mecânica posterior vem para outorgar alguma ‘ciência’ a esta moda que parece que não consegue enganar muito mais.
O espetacular astrônomo Carl Sagan, em seu livro O mundo Assombrado Pelos Demônios, p. 247 sintetiza o que exige a mecânica quântica para ser minimamente compreendida. ‘Vamos imaginar que alguém queira seriamente compreender o que é mecânica quântica. É preciso que primeiro adquira uma base, o conhecimento de cada subdisciplina matemática, transportando-o ao liminar da seguinte. Uma a uma, ele deve aprender aritmética, geometria euclidiana, álgebra da escola secundária, cálculo diferencial e integral, equações diferenciais ordinárias e parciais, cálculo vetorial, certas funções especiais da física matemática, álgebra matricial e teoria dos conjuntos. Isso pode ocupar a maioria dos estudantes de física desde a terceira série primária até o início do curso de pós-graduação – aproximadamente quinze anos.’ Ufa…
A pseudociência continua a interessar à Filosofia da Ciência como área formidável, ou seja, ruim. Espertalhões dizem que transformam a água e água feliz e outros que conseguem mudar a cor dos olhos. E sempre há ávidos consumidores para tudo isso.
O filósofo Gaston Bachelard, em seu livro de 1938, A Formação do Espírito Científico, já reproduz diversas histórias de pseudociência. Talvez a mais pitoresca delas é a que se vê às páginas 111, à qual cita Jean-Baptiste Fayol, ao ano de 1672 ensinando, em literatura ‘séria’ para a época, a cura para humanos com o gato. ‘O gato tem a ver com Saturno e com a Lua… Há quem afirme que esse animal é venenoso, e que seu veneno está no pelo e na cabeça… Três gotas de sangue de gato macho, tiradas de uma veiazinha que fica embaixo do rabo, servem para curar a epilepsia; a carne de gato abre as hemorroidas e purga o sangue depauperado; seu fígado cozido e misturado com vinho, se bebido antes do acesso, ajuda a tratar a febre quartã; a banha de gato castrado, derretida, aquece e desfaz os humores da gota; é bom colocar o couro de gato sobre o estômago, as articulações e as juntas, porque ele aquece as partes enfraquecidas pelos humores frios; seus excrementos ajudam no crescimento dos cabelos…”
Certamente há uma diferença entre Fayol e os coachs quânticos deste já surrado século 21. Fayol, ainda que pudesse ser um impostor, vivia numa época em que a crendice e o obscurantismo imperavam. Completamente diverso de o que há atualmente, com internet etc. E mesmo assim, cientologias e outras ‘cepas’ quânticas de vírus continuam prósperas.
O Brasil com sua dupla triste dificuldade, oficial e social, com ciência, tem apresentado exemplos degradados de crendice e ignorância fenomenal em áreas atualmente sensíveis, e mortais. Como o presidente da República, sem qualquer formação, ‘receitando’ Cloroquina – a rigor ele não poderia nem mencionar o nome de qualquer remédio-. Seus seguidores fazendo passeatas contrariando parecer científico da OMS de isolamento etc.
Nesta atual virada obscurantista-autoritária de 2019-2020 no Brasil, o prato está cheio. De porcaria pseudocientífica. E como diz Schopenhauer, em Aforismos Para a Sabedoria de Vida ‘infelizmente cem néscios empilhados não dão um único homem razoável’. Quem diria que se chegaria a 2020 com tanta ignorância e charlatanismo.
PS. Este artigo vai em homenagem à cientista Gabriela ‘Bibi’ Bailas, ‘corê corê’, doutora em Física, que tem um ótimo canal no Youtube, Física e Afins, de divulgação científica, e representa uma resistência severa à pseudociência.
Jean Menezes de Aguiar
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