Criminosos e fugitivos, ou honrados e perseguidos?

O fujão. Ficou preso no portão.

O preconceito branco, de classe média continua a exigir que bandidos sejam apenas negros, pobres e de preferência favelados. Dizem esses polidos que seus amigos são ‘pessoas de bem’, expressão que é uma verdadeira tralha moralista usada desde sempre como biombo para, por exemplo, sonegadores inveterados que frequentam, altivos, as passeatas na Av. Paulista cobrando ‘abaixo a corrupção’.

Alguns ‘peraltas’ do 8 de janeiro, ou seriam serelepes, e outros eufemismos ideológicos para quem, no Direito Penal, cometeu tecnicamente delito, resolveram fugir para a Argentina. Fala-se até em pedido de asilo.

O caso é que o Direito tem um modo próprio de ver o elemento central do crime: a conduta do agente.

As pessoas que foram para a Argentina, a rigor, pelo Direito Processual Penal são, tecnicamente, fugitivas. Mas por quê? Porque tornaram-se rés em processos criminais regulares no Brasil. Sim, isto mesmo, regulares. Com controles e atenções plúrimos de várias entidades distintas. Do Poder Judiciário, CNJ, Ministério Público, OAB, advogados dos acusados, Defensoria Pública, imprensa, Ministério da Justiça, além de organismos internacionais como a poderosa Corte Interamericana de Direitos Humanos, possivelmente invocável por qualquer Cidadão para efetivo controle judicial interno que diga respeito ao objeto de sua jurisdição contenciosa: os Direitos Humanos.

O investigado se torna réu quando a denúncia do Ministério Público – a peça inaugural do processo penal- é aceita pelo Poder Judiciário, após a polícia concluir que o investigado é, sim, o criminoso e assim indicá-lo, nesta situação, para o MP, que o denuncia. Só neste jogo inicial, antes do processo, tem-se polícia (Poder Executivo), Ministério Público, Poder Judiciário e defesa, quatro atores distintos. O inquérito policial – que teve curso na polícia, civil ou federal, é então sucedido pelo processo penal, no Poder Judiciário, e o investigado se transforma em réu ou acusado.

Sobre alguns dos crimes praticados pelos delinquentes de 8 de janeiro, os contra o Estado democrático de direito, há, no Direito, questão técnica menor. Saber se podem ser ou não considerados crimes políticos. Rogério Sanches Cunha e Ricardo Silvares, no livro Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, p. 52, concluem que ‘só há crimes políticos em ditaduras’. Já Carlos Eduardo Ferreira dos Santos, Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, p. 50, afirma que se a Constituição da República contempla a existência de crimes políticos, então, e por isto, eles existem. Vê-se que o segundo argumento é apenas formal ou hierárquico, devendo-se inclusive investigar, numa interpretação histórica, porque a Constituição em 1988, livrando-se de uma ditadura, consagrou a expressão.

Se crimes políticos podem existir, haverá presos políticos, prisão política e perseguição política, coisas juridicamente absurdas em qualquer Estado Democrático de Direito, situação contraditória ao moderno sistema processual penal acusatório, próprio das democracias. O fato de o crime dizer respeito ao Estado de Direito é mera epistemologia que não o qualifica como crime político, inclusive porque seu lugar de existência e regulação é o legalíssimo Código Penal, diploma normalizador maior dos delitos. Já o fato de serem julgados pela Justiça Federal, em nada, os torna ‘políticos’. Esta é uma narrativa ideologicamente errática

Assim, criminosos do 8 de janeiro, pegados em flagrante ou pegados depois, todos por meio de regulares investigações e processos penais, não podem alegar, validamente, perseguição política.

Quanto ao instituto do asilo político, situação relatada de que os que fugiram para a Argentina quereriam invocar, para tentar escapar de prisão e condenação no Brasil, encontram-se todos eles, juridicamente, na condição de fugitivos. Nenhuma outra classificação jurídica se lhes toca, a não ser a de fugitivos, devendo qualquer país com acordos internacionais com o Brasil devolvê-los à soberania brasileira.

É prevista na Constituição da República do Brasil, art. 4º, inciso X, a concessão de asilo político a estrangeiros perseguidos por qualquer situação ilegal, do mesmo modo que brasileiros eventualmente perseguidos ilegalmente aqui podem buscar asilo noutros países. Ocorre que a Declaração Universal, no art. 14 restringe, corretamente, o conceito de ‘perseguição’ a uma situação ilegítima, não podendo ser invocada a busca de asilo em caso de crimes de direito comum ou atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas. Ora, os crimes praticados em 8 de janeiro são pateticamente comuns, previstos no bom e velho Código Penal.

Assim, os brasileiros que fugiram para a Argentina não são perseguidos políticos, já que respondem a processo judicial regular no Brasil, com direito à ampla defesa e contraditório, o que dá a este processo a categoria de devido processo legal. Não sendo perseguidos – fator para obtenção de asilo- juridicamente não têm direito a asilo. Outra situação é se o presidente argentino, sabidamente filiado à extrema direita, quererá aceitar algum argumento político de ‘perseguição’, mas estima-se que internamente na Argentina isso causasse enorme problema jurídico, vez que todos sabem, inclusive ele, que estes foragidos brasileiros respondem a processo regular, sem se falar no estremecimento político com o maior parceiro comercial do Cone Sul.

Em entrevista publicada hoje, 12.6.2024, no O Globo – https://oglobo.globo.com/blogs/malu-gaspar/post/2024/06/os-obstaculos-para-extraditar-foragidos-de-81-que-tentam-escapar-de-alexandre-de-moraes.ghtml, expliquei a situação dos fugitivos. Dizerem, quererem, alegarem que são perseguidos políticos não os torna perseguidos políticos. Igualmente, se houver adeptos à ‘tese’, ainda que muitos, não os fará, juridicamente, perseguidos políticos.

Não há, nas democracias, extradição de cidadão nacional. E o Brasil não é exceção. Ocorre, entretanto, que os fugitivos brasileiros, por não serem argentinos, estão plenamente suscetíveis à extradição na Argentina, a partir de uma requisição legal de extradição do governo brasileiro para que os fugitivos respondam ao Poder Judiciário brasileiro.

Outra situação será se o governo argentino atual tentará, internamente, uma aceitação dos brasileiros naquele país como perseguidos políticos. Estimam-se aí dois problemas graves. O primeiro, um visível rompimento sistêmico no próprio Direito argentino com tal metamorfose no status jurídico dos brasileiros, sabidamente réus regulares no Brasil por crimes previstos em lei penal regular. O segundo, uma afronta direta ao sistema judiciário brasileiro, sendo o Brasil o grande parceiro diplomático e comercial da Argentina. Só para se ter uma ideia de como são estreitas estas relações jurídicas, há, para controvérsias privadas, o Protocolo de Medidas Cautelares composto entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, aqui decreto 2.626 de 15.7.1988, concluído pelo Protocolo de Ouro Preto em 16.12.1994, no qual o cumprimento (!) de medidas cautelares dar-se-á por requisição direta de juiz do país requisitante ao Poder Judiciário do país requisitado.

De toda sorte, é aguardar as cenas dos próximos capítulos, sabendo-se que na secular historiografia do Direito, ele sempre acabou vencendo. E mais, por quantos anos (!) essas criaturas terão que viver como fugitivas do sistema jurídico brasileiro? Com o moderno Direito Penal atual ‘não querendo’ prender, a não ser em situações realmente gravíssimas, aliado à facilidade digital que se passou a ter de encontrar fugitivos, declarar guerra a todo um sistema jurídico e mesmo à cidadania brasileira, empreendendo fuga para um país vizinho, é contar com o ovo na cloaca da galinha.

Se os crimes em 8 de janeiro já não demonstraram qualquer coisa, por menor que seja, ligada à inteligência, a fuga, agora, foi a diplomação da estupidez.

Jean Menezes de Aguiar



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