
O que os três fatores do título têm em comum? Mais, muito mais de o que se imagina. Em 2014 publiquei um artigo sobre ‘responsabilidade objetiva’, um tipo de responsabilização que cabe, em tudo, por força de lei, às empresas fornecedoras de energia elétrica, e a todas as outras do país, o texto pode ser lido em (https://observatoriogeral.com/2014/01/02/bateram-carro-e-onibus-a-empresa-de-onibus-nao-pode-discutir-culpa-paga/). A empresa é o polo forte da relação jurídica e não pode, por força de lei, alegar falta de culpa num evento danoso. Basta o dano ter existido. Nalguns casos dar-se-á, inclusive, a inversão do ônus da prova, quando o juiz determina que a empresa prove que não causou o dano. Isso mesmo.
No primeiro parágrafo daquele artigo de 2014 lê-se: ‘Muita gente nunca ouviu falar em responsabilidade objetiva. É o modelo jurídico evoluído que obriga o polo forte da relação a indenizar o polo fraco, sem poder discutir culpa; quem teve culpa no evento. Ônibus e automóvel; caminhão e automóvel; Estado e cidadão; empresa e consumidor; patrão e empregado. Todos estes exemplos têm em comum o primeiro ser o polo forte e o segundo o polo fraco da relação jurídica. Em todos estes casos a responsabilidade civil é, em regra, objetiva. Há uma proibição de o polo forte discutir se agiu ou não culpa. Basta se envolver num evento que tenha gerado dano.’
Enquadre-se a Enel, com sua rotineira e periódica falta de luz, e muita coisa se explica. Consumidores de um lado, ou seja, pessoas juridicamente vulneráveis, sem conhecimento técnico sobre os conceitos que envolvem o sempre milionário negócio de fornecimento de energia, e uma feliz e milionária Enel do outro. Isso sem falar em seu capitalismo lisérgico de demitir 36% da equipe de manutenção, assim que ganhou a empresa de presente dos céus, para otimizar o que muitos acham lindo: o lucro. Mas ora, péssimos atendimentos precisam fazer sentido não é verdade?
Todo e qualquer dano advindo desta chamada ‘relação de consumo’, regida pelo Código de Defesa do Consumidor, poderá ser objeto de indenização. Por várias razões. A relação de consumo é regulada protetivamente a favor do consumidor, como um direito fundamental, ou seja, garantido constitucionalmente, sendo que a responsabilidade das empresas fornecedoras sempre é objetiva, não vale invocação de ausência de culpa. Mesmo em casos de eventos imprevistos – aqui há exceções muito específicas-. Assim, toda vez que alguém vai reclamar com qualquer empresa fornecedora de produto ou serviço e ela, por meio do seu vendedor, atendente ou gerente jura que não teve culpa, e não tem qualquer responsabilidade no dano, e que tudo cabe ao consumidor, está-se diante de um caso totalmente errado. Pelo menos à luz do Direito, erradíssimo. Mas quem quiser ‘acreditar’ no gerente ou no atendente, sinta-se inteiramente à vontade.
A responsabilidade objetiva, que impõe a indenização independentemente de culpa está na Constituição, art. 37, § 6º; no Código de Defesa do Consumidor, arts. 12 e 14; na CLT, art. 2º; e no Código Civil, art. 927.
Também, há toda uma principiologia protetiva desta relação jurídica, sempre buscando compensar o consumidor frente à empresa. Assim, contam-se o princípio do protecionismo do consumidor, CDC, art. 1º; o princípio da vulnerabilidade do consumidor, CDC, art. 4º, inc. I; o princípio da hipossuficiência do consumidor, CDC, art. 6º, inc. VIII; o princípio da boa-fé objetiva, CDC, art. 4º, inc. III; o princípio da transparência ou da confiança, CDC, arts. 4º, caput, e 6º, inc. III; o princípio da função social do contrato, CC, art. 421; o princípio da equivalência negocial, CDC, art. 6o, inc. II; o princípio da reparação integral dos danos, CDC, art. 6o. inc. VI.
No caso de atendimento relapso e moroso da empresa fornecedora de serviço público, ainda com o agravante de o serviço ser público, como a iluminação, a situação se agrava. A impressão é que o sistema elétrico paulista é, efetivamente, uma porcaria, que a qualquer chuva quebra, pifa, para, dá pau, explode, pega fogo, dá curto, emperra, e o atendimento é daqueles bem mentirosinhos e safados que ao receber uma ligação se mostra ‘feliz’ com a sua ligação, ‘preocupado’ com o seu problema, e ‘engajado’ com a solução, sendo que isso tudo costuma ser gravações totalmente impessoais e por isso mesmo, alheias em termos de sentimentos, empatias, sofrimentos e preocupações prometidos. Mas os engodos sempre funcionaram, ninguém nunca se revoltou seriamente.
Uma coisa importante é o consumidor brasileiro, que tem a seu prol, um Código de Defesa do Consumidor, aprender a reclamar. Fazê-lo com eficiência. Não adianta xingar, brigar, se alterar, ofender a mocinha ou o rapazinho do atendimento que, sabidamente, têm zero de poder para decidir qualquer coisa, até em que cadeira vão sentar.
Aqui a imprensa, sempre ávida por fofocas sociais, ‘barracos’ urbanos e frases de efeito – quanto mais efeito maior a manchete-, será uma eterna e grande aliada. Se uma andorinha não ameaça qualquer verão, uma associação de moradores irada, possessa ou enraivecida – no melhor estilho inglês e pelo menos cenicamente falando- conseguirá fartas fatias na mídia contra prefeitos e governadores, todos sempre milionários, já reparou?, e nababescas empresas públicas e outros tantos que sempre têm agudizadas culpas nos cartórios. Basta se saber jogar para se obter resultados. Não é à toa que no poderoso Dicionário de Política do filósofo político mais importante do século XX, Norberto Bobbio, no verbete ‘Quarto Poder’ está ela, soberana, a imprensa. A espera de nossas iras.
Mas enquanto a ira decantada, a única que se torna digna de pensamento, conforme ensinada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk, em seu tratado Ira e Tempo, não vem e não assola os humanos, esses seres endotérmicos morais, só resta a diversão de artigos tolos e esparramados como este aqui, antes de um almoço com amigos para comemorar o triunfo do gerador elétrico, enquanto a Enel repousa em infinito e lucrativo berço.
Jean Menezes de Aguiar
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