Não se pode dizer que Roberto Carlos e “modernidade” sejam coisas muito próximas. A ideia que se tem do “rei” é de um caretão conservador. Na música, quando o Brasil inventava a Bossa Nova deslumbrando o mundo, Roberto imitava um “iê iê iê” requentado dos Estados Unidos. Músicos nunca consideraram Roberto um criador de harmonias e ritmos, como Ivan Lins, Djavan, Milton Nascimento e Caetano. Tocar Roberto sempre foi “fácil”. Também, nunca foi um Chico Buarque. Mas Roberto foi eleito o Rei. “Venceu” Simonal e todo mundo aceitou. Metade deste reinado “deveria” ir para a genialidade de Erasmo Carlos, mas isto é outra discussão. Roberto deve ter a maior comunidade de fãs do país.
Agora, este mesmo Roberto Carlos encabeça uma discussão jurídica difícil. E consegue adeptos de peso. Dizem que por causa de seu acidente mentido até esta semana, Roberto nunca aceitou ser biografado. Somente esta semana, em outubro de 2013, Roberto falou em entrevista à Globo. Disse que contaria seu “secretíssimo” (só para ele) acidente numa biografia escrita por ele próprio.
Com um discurso lamentável, recheado de escapismos e “isso precisa ser conversado”, o cantor chegou a admitir a biografia não autorizada. “Mas”, necessitando ser conversada “antes”. Uma censura disfarçada.
Há um novo campo no direito denominado Direito Civil Constitucional. Como ensina o jurista Leonardo Mattietto, não se trata apenas de uma “tendência metodológica”. Há novos valores, sentidos e objetos envolvidos nas análises e leituras. O próprio Direito Privado, patrimonialista, se viu em xeque. O fator público dos princípios constitucionais passam a influenciar não apenas as leituras ou interpretações do direito privado, mas a própria “criação” de valores e conceitos tradicionais.
Assim, por exemplo, não se admite a união de pessoas do mesmo sexo apenas porque ao casamento se dá uma nova “interpretação”, mas porque se compreende que o amor é naturalmente possível entre essas.
Sempre ao lado de uma solução jurídica há um interesse social. Roberto e qualquer um têm legitimidade para discutir biografias pessoais. Mas todo mundo vive regulado pela Constituição da República. No caso brasileiro, a Constituição de 1988 teve um “espírito”, um norte. Não quis esta Constituição “melhorar” ou aumentar os direitos privados. Todo o movimento jurídico existente no mundo não é pela privatização de direitos públicos, mas pela publicização de direitos privados. O que Roberto Carlos representa com sua resistência às biografias é um discurso personalista e privado. Em uma palavra: atrasado.
Na evolução do direito mundial, fala-se menos em direitos da personalidade (narrativa privatista, patrimonialista) do que em direitos do homem (narrativa publicista). Com isto o direito privado, obviamente, não acaba, mas se vê afetado. O filósofo político italiano Norberto Bobbio, na obra “A era dos Direitos” já advertia para esta direção. No Brasil, o moderníssimo livro de Anderson Schreiber, “Direito civil e constituição” (2013) traz farta e segura orientação evolutiva neste sentido, incluindo um capítulo sobre biografias não autorizadas.
Ninguém contesta que a chamada “pessoa pública” continue a ter direito à intimidade e à vida privada. Os crimes comuns e previstos no Código Penal, como Calúnia, Injúria e Difamação continuam a proteger toda pessoa existente sob o ordenamento jurídico. Se o biógrafo ofender utilizando-se um mecanismo criminoso para seu trabalho pode ser penalmente responsabilizado. Se ofender utilizando um mecanismo civil que se traduza em violação à intimidade também pode ser responsabilizado, aí pecuniariamente. Mecanismos há para se coibir a mentira ofensiva e a safadeza com o biografado.
Então qual é o problema de Roberto Carlos, Caetano Veloso, e até Chico Buarque, o “gênio da raça”, como dizia Tom Jobim, com biografias? Não se estranha Roberto resistir a todo custo. Roberto é um conservador bem resolvido, direito seu. Mas os outros, o pasmo é total.
O Direito Civil Constitucional com fatores privados como a personalidade, a intimidade, a vida privada influenciados por princípios constitucionais jamais pensou em retirar da órbita do cidadão sentidos como pudor, vergonha, recato e jeito de ser. O caso é que se vive a era da comunicação, redes sociais, exposição em Internet etc. Mesmo assim, pessoas como Roberto podem ser o que quiser, tímidas, envergonhadas, cismadas etc. Mas não têm direitos sobre o direito de um autor, um escritor, um biógrafo.
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo, encarregada da ação das biografias resolveu convocar uma “audiência pública”. Até a própria ministra não quer ser autoritária com a decisão. Biografados já deixaram escapar que biógrafos ganham “rios de dinheiro” com a atividade. Então parece que o problema seria comercial. Já biografados famosos afirmam que um estudo histórico sobre uma personalidade consome anos de trabalho e que o reconhecimento financeiro depois é algo mais que justo e merecido.
O fato é que personalidades públicas pertencem à história de um país. É tacanha a tentativa de impedir um historiador, jornalista ou biógrafo de pesquisar e publicar sobre suas vidas. O Brasil com essas cismas e proibições não vive um momento de liberdade, de verdade e de historiografias que contribuam para o progresso. Mas um momento medonho de atraso e obscurantismo. Para os que acham que não se pode “comparar” mais nada, se houve um grama a mais na balança entre a intimidade e o direito de noticiar ou biografar este grama está do lado de cá. Espera-se que o atraso não vença a liberdade das biografias não autorizadas. O Brasil precisa se conhecer mais. OBSERVATÓRIO GERAL.
[Artigo republicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS, GO – Jean Menezes de Aguiar]
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