Abater bandido portando fuzil pode?

 

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O governador do Rio, Wilson Witzel, lançou a ideia de abate de bandidos que, em via pública, estejam portando fuzil. O estardalhaço com a situação foi garantido, até em razão do mamífero verbo ‘abater’.

 

A coisa é complexa e desafia algumas observações.

 

A primeira é que Witzel não é leigo em Direito, ao contrário, é sério conhecedor, ex-juiz. Disso, obrigatoriamente, há de se presumir que sua ‘tese’ deva ter alguma lógica no plano jurídico. A menos que se supusesse que o governador tenha enlouquecido, pelo menos a premissa tem que ser a de que ele não teria dito uma asneira jurídica. Mas para não ser uma asneira, a saída mais próxima é se ligar a ideia do abate a um radicalismo ideológico autoritário do tipo ‘bandido bom é bandido morto’, coisa, aliás, já velha de guerra em política brasileira e, diga-se de passagem, aceita de bom grado por grande parte da população, que fique bem claro.

 

Ainda aí, dois detalhes surgem. Em termos políticos a ideia do abate – como qualquer outra, aliás – se sustenta, apenas porque a política é, sabidamente, um recipiente social desvairado em que ideias as mais estapafúrdias costumam ser postas ao público. Políticos e governantes não conseguem ser suplantados nisso. Já em termos jurídicos, a ideia do abate tem que ter um respaldo mínimo no Direito, ainda que conflituoso e mesmo que correntes progressistas da área a vejam como infame. Por que ‘tem que ter’? Porque se não tiver, sujeita o governador a duplo crime de responsabilidade capitulado na Constituição carioca, artigo 146, III, que trata de atentado ao exercício de direitos individuais e sociais, e VII, que trata de atentado ao cumprimento das leis.

 

Essas considerações talvez agucem algum estudioso a investigar com cuidado a possibilidade do tal abate – não como política de Estado ou efetividade estatal implantável-, mas, pelo menos, como uma teorética jurígena.

 

A segunda observação é um consequencialismo. Pertencendo o governador, por suas ideias e filiação a Bolsonaro, à uma direita radical, independentemente de qualquer possível lógica jurídica que seu abate pudesse ter, era de se esperar que setores progressistas de opinião estranhassem a coisa. E estranharam. A imprensa, por exemplo, quando entrevista Witzel sobre o tema tenta garimpar algum espanto dele próprio com sua ideia. Não consegue. O homem mostra-se firme e, para desespero de entrevistadores, com uma coerência desprovida de grandes contorcionismos. Sua lógica sabidamente ultrapositivista é extremada, mas a defesa verbalizada que ele faz vem com naturalidade e não transparece ilegalidades aparentes.

 

O emérito professor Nilo Batista, dentre outros pensadores seniores do Direito, sempre teorizou a Direita Penal como um conservadorismo exacerbado, e autoritário, nas ideias jurídicas. O fato é que com o recrudescimento da direita, nesta segunda década do século 21, a Direita Penal efetivamente recrudesça junto e ganhe muitos adeptos. Se a faculdade de Direito, já de há muito, não forma intelectuais, longe disso, mais se dedica a legalismos, positivismos e formalismos, não será novidade a imagem do endurecimento nas interpretações e leituras que o Direito fará da sociedade. Este ‘novo’ jurista, e aí talvez se inclua Witzel, lerá o Direito pelos sentidos ultralegalistas, ratificando, por exemplo, o abate como uma algo positivado e habilitado pelas excludentes de ilicitude.

 

Como terceira observação vêm certas práticas que as próprias polícias – praticamente todas- têm por aceitáveis, mas que costumam não ser ‘ditas’ explicitamente por autoridades públicas, pois que quando um gestor público ‘fala’ é como se o Estado pudesse aceitá-las incondicionalmente.

 

A figura do atirador de elite é comum em qualquer polícia do mundo e, sim, está habilitado e autorizado, por todas as leis, a matar em determinadas situações, sem que cometa crime. As descriminantes no Direito são velhas e qualquer estudioso as conhecem bem. A legítima defesa de terceiro deita origens no velho direito romano, ali era restrita a membros do mesmo grupo familiar, pai, mulher e filhos, vindo depois a se estender ao amigo, hóspede e vizinho. Carrara afirmou que negar a legítima defesa de terceiro seria negar o Evangelho. Florian, fala em ‘princípio santíssimo’. Nicolini chama o instituto de ‘nobilíssimo ato’. Alimena fala em ‘mais nobre e mais formosa que a defesa própria’. Bentham diz que a defesa de terceiro é ‘um belo movimento ante o espetáculo do forte maltratando o fraco’. Marcelo Linhares na obra Legítima Defesa, ensina que para o instituto, próprio ou a uso de terceiro ‘basta a existência do perigo, causado por um ato injusto, e a necessidade da repulsa.’

 

No Brasil atiradores de elite já agiram inúmeras vezes, algumas filmadas pela TV e em muitos casos o atirador saiu como herói, afinal salvou a vida de um inocente que era efetivamente ameaçado de morte.  Juridicamente, o problema na ideia de Witzel se triparte. Um, a ‘extensão’ dessa ameaça ao inocente, se precisa ser um inocente definido ou pode ser a população em geral. Inocente, individualmente considerado, rendido e ameaçado com arma na cabeça é uma coisa. Inocentes difusos, como as pessoas que estão na via pública próximas a um bandido com fuzil pode ser diferente. Em segundo, a qualificação do risco, se precisa ser um risco concreto a alguém definido ou um risco difuso à população. E por último o temor, elemento necessário em qualquer uso da legítima defesa, a mesma coisa, se o temor pode ser coletivizado ou precisa ser relativo a um inocente específico.

 

No estudo do Direito essas três epistemologias – inocente, risco (agressão certeira) e temor- que se fazem necessárias se imbricam com a leitura social de um momento histórico que porventura se pode ou deve fazer. O Rio não vive nem nunca viveu a balela do tal ‘estado de guerra’. Esta é uma burrice argumentacional que políticos e ditadores falam desde o final da década de 1960. Mas se não existe esta tal ‘guerra’, há uma violência patológica endêmica. O crime organizado chama de otário a cada dia o Estado, seus governantes e o trabalhador, principalmente os mais humildes que moram em regiões dominadas. E o Estado vem se mostrando pateticamente burro neste combate histórico.

 

De toda sorte, interpretações jurídicas mais ‘sociais’ ou progressistas quererão que na hipótese de inocentes, risco e temor difusos, a polícia não possa matar o bandido, só na hipótese de os fatores ocorrerem individualizadamente. Já uma interpretação mais conservadora admitirá o tal abate.

 

Numa análise concreta, mas paralela, de o bandido portar fuzil externamente a uma habitação, em ruas de favela, há, por si só um cenário de horror, ante a população local. E o Estado não agir pode soar como uma discriminação em que a ausência de atitude se explicaria exatamente porque se trata de uma comunidade carente. Ainda que isso não legitime, obviamente, o tal abate, é um fator sério a se pôr balança. O Estado continua o grande ‘devedor’ de atenção para com comunidades carentes.

 

Uma quarta observação é a divergência entre o que se promete eleitoralmente e o que um já gestor público, eleito, pode falar. Alguns, em início de mandato, cometem erros primários, falando demais. Esquecem-se que já foram eleitos e continuam em campanha. O prejuízo é certo. Mesmo que Witzel tivesse prometido o tal abate em campanha, talvez não fosse o caso de, já governador, incentivar autorizativamente esta prática à sua polícia. Isso não se autoriza em público. E aqui alguém já se arrepiou achando que esse tipo de mazela simplesmente não pode existir, que não se trata de apenas não falar. Tudo bem, não deve existir mesmo. Mas o fato é que o poder tem suas mazelas, taras e patologias. Fingir que o poder é limpinho e asseado é primarismo pueril.

 

Por fim, a quinta observação, tenebrosamente jurídica, ligada ao Código Penal e suas excludentes de ilicitude, a que daria o direito ao policial de matar. Ainda que datado da ditatorial década de 1940, o Código Penal apresenta uma estrutura ética a suas escolhas e tipologias que se sustenta no curso da história, mostrando-se hígido como diploma legislativo, afora um ou outro artigo que foi alterado. A interpretação judicial também corrige defasagens.

 

São excludentes de ilicitude, Código Penal, art. 23, ou seja, o agente não comete crime, quem age em: 1) estado de necessidade, art. 24, exemplo, matar um animal bravo, de alguém, que investiu contra o agente; 2) legítima defesa, art. 25, diante da agressão injusta, não se exige a fuga, exemplo, matar uma pessoa a tiros que empunhando uma faca investiu contra o agente; 3) exercício regular de direito, art. 23, III, exemplo, o ladrão que ao tentar invadir uma casa pulando o muro escorrega e morre transpassado por uma lança que existia no muro;  4) estrito cumprimento do dever legal, art. 23, III, exemplo, policial que fere assaltante em fuga. É, ainda, do conceito legal da legítima defesa a quadra de requisitos próprios: meios necessários, moderação, injusta agressão a direito e atualidade ou iminência.

 

Wilson Bussada, na obra Legítima Defesa – Sentenças e Decisões, 3 volumes, e 1173 casos analisados, apresenta exaustiva análise do instituto. Em nenhum dos casos de legítima defesa de terceiro se vê a possibilidade do abate como proposto por Witzel. Isso por si só não ‘proíbe’ a lógica witzeliana – reconheça-se- extremada. Mas no caso 62, à página 245, o acórdão diz: ‘É lição clássica em nosso direito que o julgador, no caso de alegação de legítima defesa, deve se colocar na posição do agredido e verificar como agiria’. Prossegue: ‘Certo que a convicção dos juízes, para a aceitação da legítima defesa, deve ser sem eivas de dúvidas.’

 

De aí, duas lições, uma legítima defesa ‘profilática’, como esta do abate, ainda que bem intencionada, desafiará questionamentos sérios sobre sua possibilidade jurídica. E quem responde penalmente é exclusivamente quem puxa o gatilho. Na lição de o juiz se colocar na posição de um atirador de elite relativamente a um risco não concretamente individualizado, a uma pessoa em si identificada, mas à coletividade em geral, talvez a equação não se sustentasse. A segunda lição é que por isso tudo a tese não se apresenta estreme de dúvidas. Como ética estatal, essa do abate, conquanto possa conter toda a lógica jurídica que Witzel promete, no mundo real do Judiciário haverá profundos questionamentos.

 

O bandido brasileiro, invariavelmente um sujeito semianalfabeto, das piores classes sociais, sem qualquer treinamento a nada que não seja uma imbecilidade portátil, transitando com um fuzil municiado em via pública é dos piores cenários sociais, quando não um péssimo exemplo para futuras gerações. É uma situação que o Estado não pode mais tolerar, nem a sociedade. O problema é qual varinha de mágica se usar, já que a Educação os governantes e os políticos brasileiros parecem odiar.

 

 

Jean Menezes de Aguiar



Categorias:Direito e justiça

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