
Este texto é dedicado a duas ex-alunas queridas, Renata Zago Quaglio e Veroni Lopes, que quiseram ler um artigo meu que não existia, por pura confusão minha. Sempre tive a ideia de escrever sobre a raiva e achei que já o tinha feito. Outro dia, no Instagram, afirmei que o texto existia e as duas pediram pra ler. Quando fui procurar, não existia. Ou eu acho que não. São mil textos publicados e a cabeça está há anos-luz de ser jovem. Então aqui vai.
A raiva é algo que alguns profetizam, ou querem que seja ‘obrigatória’ a todos os humanos. Se alguém disser modestamente que não tem raiva, os moralistas da obrigatoriedade partem para cima dizendo que é mentira, que não é possível, que todos têm que ter raiva. Então tá.
É como se a raiva fosse um atavismo idiossincrático a que todos seriam reféns. Mas será que é assim? Será que há esta invencibilidade de uma psiquê torturante que marionetiza a pessoa a ponto de ela não poder educar sua emoção? Algum racionalista roxo indagaria – na sua forma de falar- se esta ‘fraqueza’, a raiva, não seria meramente eliminável pela vontade consciente. Ah, mas racionalistas também merecem ir para a fogueira, berrarão os sentimentalistas da raiva.
De cara se percebe uma certa ‘rivalidade’, um tanto quanto deontológica, entre sensações psicológicas ‘incontroláveis’ – ou incontroladas para alguns –, e um poder de racionalidade que pretensamente consiga fornecer ao agente um modo de vida ‘apenas’ consciente e dentro de o que ele quer e projeta. Nada aí é novo. Mas, cá entre nós, não é possível que se ‘queira’ o ser humano totalitariamente dominado por instintos, furores ou mecanismos comportamentais invencíveis – e tenebrosos? – aos quais sua consciência e inteligência não consigam minimamente organizar.
Sobre a raiva em si, primeiramente há que não a confundir, o que parece ser algo meio comum. Veem-se pessoas confundindo raiva com pressa, tristeza, solidão ou desespero. Não é incomum, alguém apenas com pressa, ser questionado se está nervoso ou com raiva de algo. Pessoas confundem raiva com nervosismo ou zanga, quando a única razão para a rapidez funcional dos movimentos corporais do apressado possa ser uma mera e calculada pressa. Inclusive irritantemente, para muitos, cronometrada.
Também não é incomum pessoas confundirem tristeza com raiva, quando alguém se recusa a interagir socialmente, para vivenciar um motivo interno de tristeza. São logo perguntadas se estão com raiva de alguém.
As confusões com sentidos e percepções, sentimentos e reações talvez sejam mais comuns de o que se imagine. Primeiramente, porque talvez muita gente não repare detidamente no Outro, ou não saiba ao certo o que, precisamente, sente ou vivencia num dado momento, confundindo sensações.
Outra coisa é que a raiva pode ser, perfeitamente, considerada um sentimento um tanto quanto baixo, vil mesmo, no sentido de sua projeção para com o Outro. Com esta raiva vulgar, direcionada, deseja-se afetar, de alguma forma, alguém. Ou por vingança, ou por mera vontade de causar mal. Esta finalidade raivística deveria causar pudores nas pessoas. Querer mal jamais pode ser compreendido como um superproduto da inteligência. É óbvio que está muito mais para um sentido introspectivo de estupidez.
Percepcionalmente, a raiva também deve ser compreendida como mera falta de poder. Aqui, toda a raiva se torna uma raivinha, um sentimento menor. Parece que apenas pessoas impotentes, inseridas em alguma situação que não sabem como reagir ou que sabem que não podem reagir fomentam a raiva. No plano figadal, ou em sinapses do ódio e furor.
Não é à toa que Schopenhauer, em Aforismos Para a Sabedoria de Vida, ensina que ‘em geral quem se mantém calmo diante de qualquer acidente demonstra saber quão colossais e múltiplos são os possíveis males da vida’. Ou seja, será um grande valor positivo nunca perder a calma. O que não se coaduna, jamais, com raivas.
Outro ponto interessante é que as pessoas gostam de ver, mas apenas ver, um James Bond no cinema não ter nunca, jamais, raiva de ninguém. Ou um Poderoso Chefão, que simplesmente manda matar e extravasa precisamente aí sua então inexistente raiva. Mas não gostam de interagir, no cotidiano, com quem diga não ter raivas. Ou dirão que é mentiroso, ou falso, ou quer se mostrar ‘superior’.
A diferença poderia ser que James Bond não tem raiva em razão de um treinamento secreto, e quase místico, que o preparou – com licença para matar, claro-, como uma superpersonalidade existencial, à qual simplesmente não destila raiva, não sente, e quase nunca erra. Já o Poderoso Chefão, demonstra mero e funcional poder, simples assim. Quando alguém o incomoda, manda matar. Seja um irmão ou um inimigo. A nobreza da tristeza se vê nele, mas a vulgaridade da raiva jamais.
Uma das áreas que ajudam a ‘equilibrar’ sentidos, decisões, sentimentos e visões de mundo é a boa e velha Filosofia. O problema é que ela exige duas coisas que saíram de mora, definitivamente: livros e estudo. A obra leve de Schopenhauer citada acima, trata de eudemonologia, a instrução para uma existência feliz, sendo que o pensador dizia que a inteligência é parte principal da felicidade. Reconhece-se que este pode ser um entrave para muitos.
Quanto à raiva, sem dúvida alguma, ela é um triste dínamo de infelicidade. Domá-la, controlá-la, após sua identificação e origens será um exercício totalmente inteligente.
No aspecto de uma legitimidade inteligencial, uma que nos diferençaria dos outros primatas, o controle da fúria, da raiva e mesmo da agressividade já seria um ótimo começo nestas épocas de ódios e odiadores tão em moda.
Quando se estuda algo de primatologia, aprende-se, com Frans de Waal, que humanos somos primatas bipolares, um pouco da amabilidade dos bonobos e um pouco da brutalidade e dominação do chimpanzé. Pois é, há políticos bem chimpanzés que só sabem destilar raivas contra os quatro cantos do mundo. É uma vida em dificuldades, nada inteligente, mesmo que em cargos altíssimos. A mediocridade nestes casos costuma ser a mãe da raiva. Aí não há exemplos a se seguir.
Mãos à obra, e nunca mais, raivas.
Jean Menezes de Aguiar
Arte: Leo Rocha
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