
Fim de ano poderia ser uma época para que problemas, intrigas, ‘contabilidades’ e cobranças, nas relações, de um com o outro, sejam cônjuges, namorados, amigos etc., prescrevessem. Isso mesmo. Os ‘problemas’ acumulados, engasgados, guardados, deixassem de ser reclamáveis, perdessem totalmente a validade.
Não interessa que tipo de relação seja e isso tem menos a ver com as relações do que com as pessoas em si. Há pessoas maravilhosas, que não guardam coisas, falam, analisam, discutem e simplesmente resolvem. Mesmo que sepultando aquilo dentro de si para nunca mais, em hipótese alguma, cobrar do parceiro ou do amigo. E há as pessoas não tão maravilhosas assim, sabe-se, que contabilizam e guardam problemas, ou ‘créditos’, num livro da memória bem à mão para usar na primeira – ou na quinta- briga, depois. Algo do tipo: mas no ano passado você também fez isso assim e assado. Que horror.
Tomando-se o Direito como mero exemplo, praticamente tudo tem prazo e prescreve. Raríssimos, e a contar nos dedos das mãos, os direitos imprescritíveis. Para quem acha que esta lógica do Direito possa estar errada, é interessante reparar que na vida também tudo tem prazo, inclusive a própria vida. Não é à toa que Heidegger dirá que com a morte termina até o conceito de tempo.
Resolver coisas e não deixar nada para trás é um esplêndido superproduto da inteligência. É próprio daquele povo cantado por Lulu Santos, a gente-fina-e-elegante. Não deixar coisas contabilizadas, guardadas secretamente, para as invocar depois, visando a alguma obtenção, a algum crédito, a alguma compensação, gera uma relação confiável e demonstra pessoas confiáveis.
E, como tudo tem nome na vida, chamar-se-á ‘mediocridade’ a prática de contabilizar coisas para usar depois, bem parelha com sua irmã, a ‘inveja’, outro sentimento que também usa o modelo de cobrança protraída no tempo.
Sempre houve antídotos para essa gente e a Filosofia é pródiga no receituário. Desde um histriônico gargalhar, ao modelo Voltaire (Dicionário…) como para quem vive se dizendo ‘orgulhoso’ por qualquer cargo numa província bárbara por aí, até um ‘suicide-se’, de Schopenhauer (Aforismos…). Ou um simples e sonolento silêncio, de pasmo perante o absurdo, em se conviver com alguém que cisme de fazer você ouvir e aturar um requentado assunto que já passou, já morreu, ou deveria, efetivamente ter morrido.
Do Direito vêm dois conceitos muito interessantes para o caso. O primeiro é a prescrição intercorrente. Pense em 2 momentos sucessivos. Uma briga vivida e, depois, uma felicidade, vivida por um tempo concreto. Esse segundo tempo da felicidade tem que ter o poder de fazer prescrever fatos daquela briga anterior, mesmo que venha, depois, um terceiro momento de nova briga. Ainda que considerando-se a vida ou a relação como um só processo de experiência e contínuo, o segundo lapso de tempo, feliz, se minimamente concreto, tem que ter o poder de afetar positivamente, de desconstituir o que havia antes. O momento da felicidade vivida faz prescrever tudo que se lhe era anterior. Sob pena de ser uma felicidade sob ressalva, o que é péssimo para qualquer relação.
O segundo conceito, também muito lógico, é o da repristinação. Pense em 3 momentos consecutivos de uma vida ou relação, os momentos A, B e C, um seguindo ao outro. Considerando-se que no momento B, feliz, houve revogação das causas da briga do momento A, não se pode, depois, num momento C se querer repristinar – requentar – a validade histórica daquilo que pertenceu ao momento A, e já foi ‘revogado’.
Assim, as tais festas de fim de ano bem que poderiam – deveriam- ser o momento para fazer prescrever todas as dificuldades relacionais havidas naquele ano entre casais, amigos, vizinhos etc., bem como nunca mais se querer repristinar coisas já ‘revogadas’ por alguma felicidade vivida.
Na diferença sugerida pelo filósofo Ronald Dworkin (A Raposa…), entre ética (como se deve ser), e moral (como tratar os outros), haveria aí uma necessária postura ao mesmo tempo ética e moral de querer que os problemas e suspeitas, dificuldades e mágoas em relação ao Outro fossem periodicamente resolvidos em plano definitivo e cabal, ao mesmo tempo que esta seria uma forma maravilhosa de tratar esse Outro que se quer bem.
Há se concordar que a inteligência seja um naco bem considerável da felicidade, a Filosofia já analisou isso. Viver sem intrigas, sem questionamentos acusativos, sem suspeições, sem julgamentos negativos e sem diferenças acumuladas é das coisas mais sábias e maravilhosas. Cícero praticamente equiparou a amizade à sabedoria.
Que as reclamações sabiamente prescrevam hoje, já, neste 31.12.2021, e todos se beijem.
Jean Menezes de Aguiar
Categorias:Filosofia