Contratação PJ e a proibição de se dar nome aos bois

‘O segredo de aborrecer é falar tudo’. Ou, ‘os maiores crimes que afligem a humanidade são cometidos sob um falso pretexto de justiça’. Ambas as frases são de Voltaire.

O falar tudo expõe, por exemplo, o fraudador que será identificado, ainda que bem vestido e socialmente aceito, até que para se casar com uma de nossas filhas, desde que tenha dinheiro. Sim, muitos pensam precisamente assim.

Já o pretexto da justiça, ou biombo da moralidade, da segunda frase de Voltaire, mostrará o ser farisaico. Infâmia idêntica, ou pior, a um simplório criminoso. Mas, de novo, perdoada por muitos.

Ambos podem ser normais para tantos aí, mas um continuará a ser fraudador e outro farisaico.

Já o pensamento jurídico trabalha com tipos. E um pensamento advocatício quererá saber dos títulos, mundanos mesmos. Muito simples: clientes ou relações atendidos por um advogado podem, ‘perfeitamente’ ser bandidos, fraudadores, sonegadores e violadores. Basta que se dê nome aos bois e nunca se confunda o cliente com o advogado, afinal, todas as democracias constitucionais admitem a ampla defesa.

Paralelamente a isso, grande parte da sociedade ‘quer’ que certas relações sejam do jeito que lhes ‘agrada’. Jactanciosamente assim mesmo. Sem que, jamais, se deem os nomes corretamente às criaturas e às relações. Daí, um sabido comodismo sonegador; uma pronta e bem vincada malandragem trabalhista; um descarado escapismo contratual. Três categorias largamente safadas e ilegais, claro. Mas desde que a roupa seja bonita, quem se importará com impertinências jurídicas?

Não são somente inocentes ‘modismos’, nem bucólicas ‘malandragens’. São fraudes arregadas, só que não se pode chamar a fraude de fraude. Nunca. Até o jornalismo ficou com medo. O sujeito é pegado em flagrante, filmado e identificado com todas as digitais assaltando, e a referência a ele é de ‘suposto assaltante’.

Nas relações de trabalho, entrou na moda a coisa do ‘colaborador’. Todo mundo virou ‘colaborador’. Claro que há um preconceito derramado com a terminologia ‘empregado’, que em inúmeros casos é o correto. Se se tem relação de emprego jamais se é colaborador, simples assim. Ninguém menos que Sergio Pinto Martins dispara: ‘Se o trabalhador é colaborador, não tem subordinação, mas autonomia’, à página 238 de seu Direito do Trabalho, 35ª edição, 2020. Mas vá chamar alguém, numa relação empresarial, que não seja um empregado doméstico, de ‘empregado’. Surgirá logo um olhar preconceituoso julgando a ‘ofensa’. Eufemismos e calhordices foram inventados precisamente para esses momentos e situações.

Outra ‘moda’ (…) é a contratação de alguém como PJ – pessoa jurídica-. Tente ensinar a contratação PJ com seu correto nome jurídico, ‘fraude’, ‘mero simulacro’ ou ‘artifício’, conforme jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho analisada no livro Curso de Direito do Trabalho, de Carlos Henrique Bezerra Leite, 13ª edição, 2021, p. 467, numa sala de aula de adultos e experimente a reprovação dos olhares e das dúvidas. Verdadeiramente antropofágicos. As próprias vítimas do sistema parecem querer que a fraude não seja fraude, meramente porque ouviram dizer que ‘pode’, ou que como ‘todo mundo faz’, agora pode. Na eterna obra Comentários à CLT de Valentin Carrion, 45ª edição, 2021, p. 42, lê-se com todas as letras: ‘O direito social ampara apenas o trabalho humano pessoal. Os serviços prestados por pessoa jurídica não podem ser objeto de um contrato de trabalho.’

Não adianta, muitos leem e não ‘aceitam’. Querem a sua leitura obtusa da lei. Se não fosse o formidável caso de pejotização da TV Globo com 42 artistas famosos saindo na mídia e no Google, chegando a processo criminal por sonegação e multa de R$ 10 milhões, muita gente continuaria a não ‘acreditar’. Livros, jurisprudências trabalhistas, nada disso vale para ‘valentes’. Vale somente a crença de que contratar como PJ ‘pode’. Advogados trabalhistas agradeceriam, se isso não representasse uma patologia do sistema que tem custado caro a empresas. Enquanto isso, empregados PJ fazem sua caderneta de poupança laboral. Quando saírem do emprego, justiça do trabalho.

A reforma da CLT de 2017 admitindo a terceirização de atividade fim e o chamado autônomo exclusivo, do artigo 442-B, ainda ‘piorou’ tudo para teimosos que insistem em confundir conceitos. Ou majestosos canalhas como os da frase do romancista Dumas Davy de la Pailleterie, mais conhecido como Alexandre Dumas “prefiro os canalhas aos imbecis. Os canalhas, pelo menos, descansam de vez em quando.”

Nas relações humanas em geral há muita ‘dificuldade’ com se dar nome aos bois. O primo que desfalcou não é ladrão. O filho que trai não é desonesto etc.

Considerando-se partes e relações, a mesma coisa. Alguém que, por exemplo, ‘trabalha’ premido por alguma ilegalidade na contratação, do tipo PJ, foi contratado ‘como PJ’. Quando este trabalhador exige sua remuneração que não veio à data certa, pode invocar, perfeitamente, o crédito ‘trabalhista’ do seu ‘patrão’. Mas alguém se apressará para dizer que aquilo é mera prestação de serviço e não há crédito trabalhista. Praticamente não se trabalhou, dirão os escapistas.

Outra situação é na contratação ter havido mancomunação entre empresa e ‘trabalhador’, para se dissimular a contratação para PJ. Doutrinadores como Mateus Marinho Arão dos Santos, Angélica Jacob D’Amico e Jorge Gonzaga Mastumoto falam, corretamente, em ‘culpa concorrente’, Código Civil, artigo 945, incluindo o próprio trabalhador no conluio. Assustador? Não, mera consequência jurídica.

Um bom paradigma para se compreender relações assimétricas ou não equipolentes, em que há um polo forte de um lado, e um polo fraco do outro, é a relação de consumo. De um lado está isoladamente o consumidor, do outro toda uma cadeia de até 8 possíveis envolvidos: o produtor, o montador, o criador, o construtor, o transformador, o importador, o exportador, o distribuidor e o comerciante.

O Direito minudencia os participantes das relações exatamente para que nenhum deles consiga tirar o corpo fora, seja em escapismo ignorante próprio do ‘imbecil’ de Dumas, que não conhece as relações a que está profissionalmente submetido, seja do seu canalha favorito, aqui achando que poderá ser mais esperto que um secular Direito do Trabalho.

As relações jurídicas têm linhas divisórias, com lados bem nítidos. Ou se é empregado ou trabalhador de um lado; ou de um outro, bem oposto, é-se patrão, empresa, empregador, agenciador, coordenador, gestor etc. Ou se é vítima por um lado; ou autor, coautor, partícipe no outro. Também igual na relação de consumo.

Há excelentes e confiáveis artigos na internet sobre a contratação PJ. Um deles é ‘Terceirização x Pejotização’ da advogada Gisele de Almeida Weitzel. Outro é ‘A Reforma Trabalhista Liberou Geral a Pejotização?’, de Marcelo Mascaro Nascimento.

Talvez no fundo de tudo isso esteja a crise do conhecimento, da ciência do saber. Um dia o ‘imbecil’ que Dumas diz renegar ao canalha, acordou e resolveu que pode opinar sobre tudo. Direito, vacina, urna eletrônica, ciência, astronomia etc.

Que venham os ‘canalhas’ de Alexandre Dumas. Pelo menos eles resolveram conscientemente descer para o play da ilegalidade. São parceiros dos de ‘Brasília’. Contabilizam seus passivos trabalhistas e têm suas assessorias jurídicas. Já os outros continuam crendo em bules voadores. Mas esses nem dormindo têm jeito.

Jean Menezes de Aguiar.



Categorias:Direito e justiça

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