Discutindo o direito civil constitucional, artigo de Jean Menezes de Aguiar aborda alguns fatores sensíveis à nova realidade. A evolução do legal para o constitucional. A dignidade da pessoa humana. A perda de completude do Código civil e os microssistemas. A pós-modernidade.
A íntegra do texto elaborado para os jornais O Dia SP e O Anápolis, GO é publicada aqui, no OG.
Era uma vez o direito privado?
Deu-se uma revolução ou reacomodação de conceitos razoavelmente silenciosa no mundo jurídico e no mundo social. Novos valores passaram a ordenar, ou melhor, a desordenar a vida em sociedade e impor padrões nitidamente diferentes de um modelo antigo de direito privado.
No Brasil duas situações mostram essa nova realidade. A primeira de ordem material. Trata-se da Constituição da República de 1988, trazendo temas reorganizados sob a ótica impositiva de um novo padrão social que se torna então obrigatório.
Saía o patamar “legal” de percepção social: como as pessoas viam e viviam o direito. Também alterava-se o convívio interno epistemológico dos direitos: como são as relações entre direitos, direitos e princípios constitucionais e respectivos modos e cruzamentos de interpretação. Com a saída desse patamar legal, subia-se para a efetividade do patamar constitucional. Não seria exagerado dizer que houve uma mudança paradigmática hierárquica: do legal para o constitucional.
No Brasil sempre houve Constituição, mas nas décadas de regime autoritário, anteriores a 1988, a efetividade de seus princípios era bastante relativizada. Mais, praticamente toda a importância constitucional era concedida ao Estado e não ao cidadão. O cidadão, absurdamente, só aparecia na Constituição anterior no art. 153. Antes daí, só Estado e nada de cidadão. Atualmente os direitos e garantias fundamentais se veem no art. 5o. Uma inversão de valores admirável.
Aí talvez esteja a cultura histórica imediata de o Estado brasileiro cuidar tão bem de suas “autoridades”. Salários exorbitantes; acobertamento de corrupção; “auxílios” e mordomias. Tudo contrariamente ao que se vê em termos de menosprezo à sociedade, atendimento e retorno pífio relativamente à arrecadação tributária estúpida.
Com o câmbio paradigmático do legal ao constitucional, toma-se o cidadão como primado e objeto central de todo o sistema jurídico brasileiro. Veem-se alterados, para melhor, os níveis de garantias e direitos, em todos os campos. Com esta nova banda sistêmica social, privilegia-se a dignidade da pessoa humana em sua centralidade. Some-se a isso a imprensa livre e os entrechoques entre uma sociedade injustiçada e um Estado blindado ver-se-ão barulhentos.
A segunda situação é de ordem instrumental: a reorganização no sistema legiferante. Temáticas inteiras saem do Código Civil para ganhar status de leis esparsas. Aí o fenômeno da perda de unicidade do Código Civil e a entrada de um sistema plurívoco: o Código não ordenando mais todo o sistema de direito privado. Ou, minimamente, tendo que se dividir homogeneamente com assuntos que nem passam por suas páginas.
Para esses assuntos como direito do consumidor, menor e adolescentes e outros, continuará no Código uma principiologia organizadora. Por exemplo com a imposição da boa-fé, fator que deveria ser óbvio nas relações mas que, na lei, só a partir de 2002 ganhou forma expressa para um convívio social mínimo.
Não é à toa que Orlando Gomes ja ensinava: “O Código Civil foi o estatuto orgânico da vida privada, elaborado para dar solução a todos os problemas da vida de relação aos participantes. Não é mais, a olhos vistos. Perdeu, com efeito, a generalidade e completude. Suponho que jamais conseguirá recuperá-las. A menos que se dê outro sentido ao vocábulo Código, não como salvá-lo.” A caminho dos microssistemas, in Novos temas de direito civil, p. 45 e 50.
Se o Código Civil não ostenta mais o vigor de unidade do sistema, sabendo-se que chegamos aos microssitemas, quais podem ter sido as causas? Análise de causas é sempre uma busca infinita na filosofia e na ciência. Mas, guardadas essas proporções, talvez uma causa seja ao mesmo tempo genérica e um tanto quanto óbvia, e a outro tempo uma investigação difícil de ser apreendida.
Sob o nome de “pós-modernidade” explicou-se uma série de fenômenos em diversas áreas. Quebras de narrativas científicas. Relativizações generalizadas. Compreensão de fenômenos entrópicos na sociedade, como uma desordem que representa a sua própria ordem. Já no cenário social de direitos, a entrada e aceitação de novas relações, inspirações e desejos a desconfigurar um modelo clássico.
Há também uma “inversão” na vida em sociedade. “Não é mais” o direito que organiza autoritariamente as relações; mas as relações passam a ter força para alterar direitos e estruturas legiferadas existentes. Não apenas pela “legitimação” a que se refere Niklas Luhmann, mas pela mudança reclamada.
Reivindicações até então consideradas heterodoxas, fora do padrão ou mesmo ilegais começam a receber um olhar de normalidade ou aceitação por uma sociedade receptiva. Com isso, o “chamado” direito privado se transfere para a sociedade de uma forma efetiva, no sentido de que a representação formal de sua criação deixa (ou perde em grande medida) de ser um procedimento autoritário e com fixidez, para se ver efetivado em anseios sociais e bastante dúctil.
Se este novo direito privado não acompanhasse a mobilidade social haveria um descolamento entre a positivação e a experiência; entre a função monopolística do Estado como produtora de leis, e a vontade popular acerca da qualidade dessas leis.
Fica claro que o direito privado “subsiste”. Não há aqui a crítica de Léon Duguit à inverificabilidade ou ao ocaso do “direito subjetivo”. Mas se o direito privado não demonstrasse a docilidade epistemológica de receber ares multifacetados, talvez se vivesse um surto social grave.
Neste cenário aberto e móvel poderia ter grande proeminência a ética. Mas, por outro lado, o esgarçamento de valores com a mesma pós-modernidade parece ter, em grande medida, seviciado e viciado as bases de uma ética prática e social, hábil a uma vida melhor; ou mais “natural”. Talvez estejamos no limbo. Um direito privado bom em se revigorar, mas uma sociedade ainda sem saber muito bem para que lado andar, considerando que os lados nos são abertos.”
[ Jean Menezes de Aguiar escreve semanalmente para os jornais O Dia SP e O Anápolis, GO; é advogado, jornalista, e professor da FGV (pós-graduação);e Castelo Branco, ES. É diretor do Observatório Geral – http://www.observatoriogeral.wordpress.com. E-mail: jean@jean-adv.com.br]
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