O princípio da segurança jurídica; concursos e concurseiros; jornaleiro multado por subprefeitura careta por fazer arte em sua banca; a “cabeluda” de Nanda Costa; conservadorismo. Tudo junto e misturado no artigo “O modismo da segurança jurídica”, com imagens. Confira. OG.
O modismo da segurança jurídica
O princípio da segurança jurídico é algo positivo no direito. Garante a favor da cidadania, por exemplo, que não se percam ou não sejam mudados direitos constitucionais. Mas há um certo frenesi com seu uso. Principalmente por positivistas de plantão que utilizam o princípio como biombo. É neste aspecto, até com uma forçada crítica, que o artigo de hoje quer transitar.
Acusar algo de “modismo” é imputar certa futilidade histórica. Ou um grau de insegurança. Nos estudos de filosofia da ciência veem-se manifestações assim. Paul Feyerabend no livro “Adeus à razão”, p. 27, sobre o “relativismo” diz: “Perdurou durante todo o Iluminismo e, nos dias atuais, está bastante em moda como uma arma contra a tirania intelectual e como um meio de desmascarar a ciência. As ideias e práticas relativistas não estão restritas ao Ocidente e não são um luxo intelectual”. Ainda que Feyerabend tenha sido, talvez, o maior defensor de um relativismo anárquico.
O direito não ficou alheio às ondas e modas. Passou-se a falar, no pós-positivismo atual, com muito mais intensidade em “segurança jurídica”. O fenômeno pode ter a ver, no plano doméstico brasileiro, com um outro modismo, o do concurso público e a nova classe “antropológica”: a dos concurseiros.
Concurseiro não “é” médico, engenheiro, advogado, nutricionista ou psicólogo. Sua formação não lhe interessa. Não há juramento que lhe comova. Sua meta é ser aprovado em concurso, obter emprego com estabilidade. Darcy Ribeiro já disparava: “este jovem faz concurso e se esquece do Brasil”.
No métier do pragmatismo potencializado, o direito positivo será o onanismo monotemático, e a segurança jurídica o gozo finalístico. Para que metodologia científica, epistemologia jurídica, aporias filosóficas e genialidade? Miguel Reale, Caio Mário, Hannah Arendt, Robert Alexy e Jurgen Habermas, dentre outros tantos, serão totalmente desnecessários.
É o amasiamento entre o direito positivo e sua raptora originária, a segurança jurídica. Percebem-se aí, traços de um neonazismozinho teorético. Um conservadorismo utilitarista. E, invariavelmente, interpretações automatizantes e subsuncionais lacradas. Nos jovens adoradores da segurança jurídica, com seus cortes de cabelos quase skinheadianos, veem-se modelos com baixas criatividade, inventiva, liberdade, transgressão, arte e genialidade. Sobram ordem, disciplina, autoritarismo, conservadorismo, preconceito e, quiçá, reacionarismo pensantes.
A esquizofrenia da “segurança jurídica”, imaginando-se uma ode a ela, impede a arte e a felicidade. Tente tocar guitarra no metrô de São Paulo. Algum obediente de plantão advertirá energicamente que precisa de “autorização”. Compare com o metrô de Nova Iorque em que a arte é simplesmente livre.
Lê-se, no dia de hoje, 14.8.13, que o jornaleiro Vagner Seripierri, 35, do Cambuci, região central de São Paulo foi multado por ter grafitado – arte! – a própria banca de jornal. A “ordeira” subprefeitura (que lindo) agiu energicamente para restabelecer a ordem. Ou será a segurança jurídica?
Também se lê hoje que a atriz Nanda Costa vem sendo patrulhada por ter mostrado uma bela coleção de pelos pubianos nas fotos da Playboy. O conservadorismo se revela sob várias formas, até sobre pelos da mulher. Uma tentativa de controle sobre o “sexo frágil” (aspas!).
O magistrado Sálvio de Figueiredo Teixeira, do STJ, no julgamento paradigmático do DNA deixou lição valiosa e própria dos geniais. O Poder Judiciário relutava em vencer o fenômeno da coisa julgada, mesmo diante do exame científico do DNA. Teixeira disse: “Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade. (Resp. 226.436)”
Infelizmente esta regra não costuma ser a usual entre positivistas da segurança jurídica. Por isso também Hannah Arendt já afirmava que “os direitos humanos não são um dado, mas um construído”. Como se construir uma densidade em termos de direitos humanos sem transgredir, sem violar, sem desrespeitar a segurança jurídica anterior? Vejam-se os novos direitos. Transplantes; morte encefálica; transexualidade; barriga de aluguel; reprodução assistida; tatuagens; experiências em humanos. Todos eles requereram criatividade e não segurança jurídica, ainda que o pensamento possa não ser maniqueísta e polarizado em sua forma mais simples.
Conceito que precisa ser recepcionado nesse cipoal de ideias, díspares e desconexas, como a vida pós-moderna, é o da “ponderação”. Esta técnica de decisão visa a solucionar conflitos que não possam ser resolvidos pela classicalidade da hermenêutica jurídica – semântica, lógica, histórica, sistemática ou teleológica -, ou mesmo pela hermenêutica constitucional.
Aí, de novo, aparece Alexy conceituando os princípios jurídicos como “ordens de otimização; normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro do contexto jurídico e real existentes”. Na tendência contemporânea percebe-se toda uma narrativa desconstrutivista. Ainda que violar um princípio possa ser muito pior do que desrespeitar uma norma.
Fica claro que o tema segurança jurídica aqui é utilizado de forma desvirtuada. O recurso ao esgarçamento com o assunto talvez se preste a mostrar certa caretice ou conservadorismo. Nada mais que isso. Usar a segurança jurídica como blindagem a mudanças, renovações e desconstruções no direito é um equívoco sociojurídico que não se sustenta em tempos de manifestações populares. Ativistas têm sido pegados em flagrante, quebrando instalações, por exemplo, e sido invariavelmente soltos por juízes de plantão. Famintos de segurança jurídica torcem a cara.
Talvez a linha mais tênue e difícil de se discutir seja a que busque vincular segurança jurídica a um tipo de ordem obtusa, ou mesmo a um positivismo oitocentista. Não se discute que segurança jurídica “lúcida” – então haveria duas, a lúcida e a autoritária -, é necessária inclusive na garantia dos princípios constitucionais. Mas figuras positivistas ágeis têm invocado a segurança jurídica como biombo para interpretações engessadas. Esta a crítica.
Será que Sálvio de Figueiredo Teixeira e Alexy aprovam a “cabeluda” de Nanda Costa? Eu aposto que sim. Jean Menezes de Aguiar/OG.
[Artigo publicado nos jornais O Dia SP e O Anápolis, GO, semana de 15.8.13]
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