A conversinha juiz-procurador x Intercept

 

 

 

Sobre a fofoca e fofoqueiros por André Kummer

André Kummer

‘O problema ali não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo, era o diálogo em si, o conteúdo do diálogo, que era uma ação visando burlar a justiça. Este era o ponto.’ (Atual ministro Sergio Moro em entrevista concedida a Pedro Bial em abril de 2019, referindo-se ao vazamento de conversa telefônica entre a ex-presidente Dilma e o ex-presidente Lula)

 

Nada como um dia após o outro. A soberania do Tempo. Cura tudo. Prova tudo.

 

Quem não é da área do Direito talvez não consiga ver a gravidade das conversas vazadas Moro-Dalagnol e outros. Dirá que foi apenas uma ‘inconveniência’; um ‘mal-estar’ político; algum ‘excesso’; ou outro eufemismo amador qualquer. Os eufemismos nunca são suficientemente sutis para serem ‘profissionais’. São sempre coisa de gente escapista e amadora, sem grandes personalidades e autoralismos.

 

Também, os grávidos de um (ainda) Moro-herói quererão que os diálogos, já confirmadíssimos por ele próprio, não tenham nada de mais. Bem, papel de fã é adorar cegamente; não conta numa análise crítica. O certo é que há dúvida se alguma faculdade de Direito que se preze, depois dos diálogos, ainda convidaria o ex-juiz para paraninfo. Difícil.

 

O problema das conversas de cocheira Moro-Dalagnol se divide em duas análises possíveis. Uma, política, que pode dizer respeito a juizetes e sentenciantes de Instagram, esse povo-raiva com suas opiniões-paralelepípedo, opiniões-nocaute. Tudo sem a mínima profundidade, a não ser as certezas absolutíssimas. Na filosofia, bem próprias dos inocentes. Assim, virou moda garantir que alguém é lacrador, mito, e outras futilidades do pensamento primário.

 

Uma outra análise é a do Direito, com nortes e princípios seculares, cuja violação a alguns deles induz óbvias nulidades processuais e perdas para o sistema judicial. Além de perda para a sociedade como um todo.

 

Tudo que a Lava Jato não precisava era dessas conversinhas safadas. Deixou seriamente arranhada a credibilidade da coisa. Acabou meio na lata do lixo, virando Vaza Jato. Internacionalmente, no plano jurídico, em meios acadêmicos e jurídicos, expôs o país a um vexame típico de republiqueta.

 

Não adiantou toda sisudez e imponência dos ‘cargos’ envolvidos – juram que é só isso, que não é vaidade pessoal ou provincianismo cafona de sarjeta a sanha de obrigar o povo a tratar ‘autoridades’ (…) por ‘excelência’, só rindo-. Nada disso segurou o frenético e mundano whatsapp, mandando seus indefectíveis ‘risos’ e passando a mão na bunda da moral, da ética e do Direito Processual Penal. Esses três aí, safadinhos, como diria alguma avó ingênua, aceitam tudo, desde que em segredo. E nas conversas descaradamente ilícitas, aceitaram mesmo.

 

Modernamente, como ensina o grande jurista português Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 75, o debate teorético-constitucional não se assenta em saber se uma Constituição é ‘justa’, mas se saber acerca de sua legitimidade. Esta lição é diretamente transposta para um processo judicial, relativamente à sentença. Com mais força, para um processo penal, cujo valor máximo do ser humano está em jogo: a liberdade. Mais de o que justa ou injusta uma sentença, importarão os mecanismos de legitimidade dela, no processo judicial.

 

Conversas sorrateiras – e, claro, ilegais- entre juiz e procurador ou promotor, visando a uma sentença intencional e customizada a uma vontade ou ideologia prévia de condenar, retiram o substrato de legitimidade de todo o processo judicial. Tornam o processo nulo. Não há um único jurista sério no mundo que conteste uma ‘equação’ assim. Não há um que defenda que juiz pode, sim, se concertar com um promotor ou procurador, relativamente a um processo penal, visando a condenar, sem que isso contamine – e anule- o processo. Para quem não é da área do Direito, isso tem um nome ‘desagradável’, mas necessário, se chama promiscuidade processual. Com todas as letras.

 

O analista que não consegue trabalhar com uma mínima organização mental a ponto de perceber, e exigir, que qualquer cidadão, seja da esquerda, da direita, amigo ou inimigo, merece um processo judicial legítimo, ou seja, isento e ético, constrói uma análise obtusa. E imprestável.

 

A pior ofensa, a pior desqualificação que pode sofrer um juiz, é dizê-lo ‘parcial’ na atividade judicante. Aí se retira a legitimidade da ‘pessoa’ enquanto minimamente habilitada a julgar qualquer coisa. A parcialidade contamina feito carvão tudo que esse juiz tocar naquele processo judicial, gerando óbvias nulidades. As provas serão guiadas a um determinado fim que se espera; as testemunhas serão selecionadamente dispensadas, escolhendo-se quem se quer ouvir e quem não se quer; os interrogatórios serão tendenciosos, perguntando-se para se pegar contradições que beneficiem uma intenção preordenada; e, naturalmente, a sentença será previsivelmente imprestável em termos de justiça.  Isto é como um muro de pedra principiológico que não se consegue ultrapassar, ou fingir que não existe no Direito Processual.

 

A advocacia que sempre foi o controle efetivo de tudo isso no processo judicial, garantidora da liberdade democrática, passou a ser odiadíssima por uma sociedade punitivista, condenatista, que só sabe se abeberar da raiva e do ódio. Mas não só a sociedade. O próprio Estado passou a ojerizar a advocacia, juntamente com outro controle social importantíssimo, o jornalismo. Chegamos ao que chegamos. Só importam, agora, as sentenças condenatórias. Um réu que venha a ser absolvido é um escândalo. Advogados são apedrejados nas portas dos tribunais do júri, confundindo as pessoas, o criminoso com seu defensor. É a vitória da estultice pensante.

 

Sergio Moro e Dalagnol foram pegados de surpresa com as conversinhas e, no primeiro momento, as confirmaram. Depois, ‘passaram’ a usar uma desesperada tergiversação e, aí, ‘começaram’ a negar, genericamente. Não chega a ser, propriamente, um farisaísmo pessoal. Talvez qualquer um que estivesse no lugar do ex-juiz caísse no mesmo ‘erro’. O desespero e a premência geram equívocos. Repare-se que quando da prisão dos violadores, Moro se apressou em ‘ameaçar’ os ministros do Supremo com a informação de que eles também estavam grampeados e com isso tentar obter respaldo para destruir as gravações. Não colou, os ministros do Supremo não caíram. A própria Polícia Federal desobedeceu a ordem de Moro e, corretamente, não destruiu as provas. Aliás, o que foi esta apressada ordem de Moro à Polícia Federal para destruir provas, se não representou, já na época, mais uma confissão de culpa?

 

Para quem acha que uma ou outra análise destas aí possa ser coisa ‘isolada’, ou como entrou na moda dizer, coisa de comunista, esquerdista, antimorista, antibolsonarista ou outra qualquer outra bobagem dessas, é importante saber que as análises só conversam com outras análises, só cedem a outras análises. Não a modismos.

 

A nova desculpa de Moro usando o Código de Processo Penal (CPP), artigo 40, no sentido de que juiz pode enviar coisas para o Ministério Público só serve para leigos. O Supremo Tribunal Federal (RTJ48/321), considera que a notitia criminis do juiz ao promotor não o torna impedido. Preste atenção: notícia de crime, por ofício, no caso ato correcional do juiz, feito de modo legal, remetendo cópias e documentos para o MP. Não é orientando, sugerindo, dando dicas, ajudando a escolher testemunhas e pistas de investigação. Se não for por uma notícia de crime oficial é óbvio que o conluio gera proibição ao juiz de julgar o caso. Isto está no CPP anotado de Damásio de Jesus. Também nos Comentários ao CPP de Heráclito Antônio Mossin, art. 40, vê-se que essa comunicação do juiz ao promotor ‘trata-se de notitia criminis de cunho obrigatório’.

 

Chega a ser uma desfaçatez jurídica – ou incúria completa-, Sergio Moro invocar o artigo 40 do Código de Processo Penal para legitimar sua conversa de cocheira com um procurador da República, parte no processo.

 

A Lava Jato foi espetacular e continua a ser. Representa um marco na corrupção brasileira e certamente irá fundar uma cultura ética bem diferente, principalmente pelo medo de poderosos e ‘autoridades’ públicas quererem corromper as estruturas. Tudo bem, tudo lindo e todos os elogios a ela. Mas a conduta de Sergio Moro mostrada é simplesmente infame e tem que ser investigada a fundo, podendo, sim, anular provas e até o processo penal como um todo.

 

A imprensa e a população sentaram no colo do Direito. O Direito virou moda. Todo dia sai notícia jurídica chupada de algum site de tribunal ou polícia para todo mundo. Isto está vendendo e tem gente comprando. Tudo bem. Mas o Direito não é tão ‘simples’ como uma leitura literal de seus princípios, normas, doutrina, pensamento etc.

 

A triste conversa Moro-Dalagnol é causa de anulação de provas e processo penal. Agora, o que os tribunais vão fazer com isso, se vão ser fiéis ao Direito ou se apenas politizarão a situação é outra coisa. Só o tempo dirá.

 

Jean Menezes de Aguiar



Categorias:Direito e justiça

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