A lacração e o pensamento por competição

Uma das formas do pensamento inteligente, num diálogo, é a atenção sobre o tema em si. É ele que importa, ou deveria importar. Quando alguém apresenta um assunto qualquer para discussão, o foco de preocupação, estudo, conhecimento, crítica e busca de solução deve ser o próprio tema sugerido, nunca quem o trouxe, ou que ideologias o tema atrai. Porém, na ‘terra plana das opiniões prontas’, conforme Marco Casanova (A Persistência da Burrice), a situação se complica formidavelmente.

Assim, diante de um assunto a se tratar e antes de qualquer contestação a ele, às pressas, há que se construir um mínimo de conhecimento a ponto de se conseguir ‘sair’ da esfera simplista e descartável da opinião que, em todos os casos, é imprestável como fonte de conhecimento, conforme Isabelle Stengers (Quem Tem Medo da Ciência?).

Este modo de conhecimento e identificação prévios do tema, costuma ser o modo de estudiosos e cientistas, pessoas que elaboram dúvidas planejadas. Não é à toa que Hegel (Filosofia do Direito) dizia que o saber só pode ser apresentado como ciência ou sistema. Por outro lado, quem vai querer pensamento sistêmico se pode detonar o interlocutor, com o orgulho das certezas inabaláveis e outras asneiras à mão?

Aqui começa a se desenhar uma primeira diferença entre inteligência qualificada e a tolice dos ‘lacradores’: o tempo. A inteligência de estudiosos, procurando buscar um conhecimento prévio de o que precisam refletir, tem uma relação complicada com o tempo. Estudiosos sabem que precisarão de um mínimo de maturação intelectiva, pensamento e atenção para construir qualquer análise inicial. Até a ira, para se tornar digna de pensamento exige tempo, conforme Peter Sloterdijk (Ira e Tempo).

Mas para a tolice que valida a ‘lacração’, a exigência é por respostas imediatas e efetivamente sem qualquer intervalo reflexivo, pois o seu sucesso é, precisamente, ter a possibilidade de contestar o interlocutor com qualquer coisa, sem perder tempo com o pensar e a reflexão. Aqui costuma-se invocar um préstimo totalmente desastroso na ciência: a obviedade. Para o lacrador, tudo que ele fala ou defende será respondido como ‘óbvio’ em relação a seu antagonista.

Isto tem duas ‘validades’. A primeira é tornar automaticamente idiotizada a fala do interlocutor. Esta aparência de desconstrução por obviedade fácil garante ao lacrador, pelo menos em relação a um auditório primário, um ganho de intelectualidade instantânea. Ou, se isso não se confirmar, será o bastante para que o próprio lacrador se sinta bem. Os primarismos filosóficos da disputa, do desafio e da vitória ganharam ares suntuosos nas vaidosas mentes lacradoras.

A segunda é demonstrar a superioridade da desconstrução feita pela rapidez do argumento. Só quem, em olímpica instantaneidade, consegue contestar qualquer coisa, usando o panfletarismo da obviedade, consegue se mostrar inteligente no diálogo com um interlocutor, ainda que em absoluta falta de educação, perpassando a ideia de que o que o outro diz, seja um amigo ou parente, é uma tontaria.

No período brasileiro que se encerra em 2022, lacradores políticos, nas famílias, nos almoços, nas empresas e na internet estão muito bem definidos por Sloterdijk (Crítica da Razão Cínica), referindo-se ao nazismo: ‘correntes maciças de um Contra-Esclarecimento e de um ódio à inteligência; uma falange de ideologias antidemocráticas e autoritárias que sabiam se organizar de maneira eficaz em termos publicistas; um nacionalismo agressivo com traços de luxúria vingativa’. Não é à toa que patriotismos e conservadorismos ultrapassados, além de um eterno nazismo requentado vieram à tona.

O pensamento por competição é o que imagina que precisa ‘responder’ para se firmar, ou até para existir como ente personalista. O silêncio cínico e polido – a polidez já como metacinismo tautológico risonho- se lhe é insuficiente. O lacrador é jactancioso e serelepe com a própria fala; jamais consegue imaginar que constrói desastres por meio de sua mente verborrágica, atualmente pensando com dedos, digitando e repostando asneiras em redes sociais. O competidor também é operoso, tipo de sujeito que, por pobreza interior se tornou social, na aflitiva lição de Schopenhauer (Aforismos).

Robert Blanché (Estruturas Intelectuais), ensina que um conceito nunca está só, havendo entre os conceitos o que ocorre na família humana, uma ordenação de parentesco. Tente explicar isso a um positivista roxo, um gramaticalista primário que acredita que a frase existente na Constituição vale pela literalidade oracional que seu grande status de alfabetizado consegue ler ou traduzir. Isso faz lembrar a famosa lição de Eros Grau (Direito Econômico) de que não se interpreta a Constituição em tiras. Para o competidor nada disso interessará, só sua volição figadal de dizer o que é e o que pode ser a Constituição.

Alguns conseguem heteronomias de autoridade, idealistas letrados e famosos, sejam médicos cloroquínicos ou advogados golpistas de Estado, vagando por uma espetacularmente vadia internet vendendo análises conceptuais, precisamente as que não produzem qualquer conhecimento novo, conforme Shapiro (Filosofia da Matemática). É o suficiente para estufar a lacração e o argumentismo, afinal, quem é ‘você’ perante um famoso imbecil, ou um imbecil famoso? Neste diálogo erístico, comandado pelo ódio, ‘você’ tem que perder, não há outra hipótese. Reconhecer o outro é grandeza não para lacradores. O furor da razão ensinada por Feyerabend (Adeus à Razão) também representou sua ditadura.

Na sociedade da lacração em que qualquer um sabe tudo e está legitimado a opinar sobre qualquer coisa, deixam de existir, por exemplo no Direito, que entrou na ‘moda’, os dois famosos ‘tipos totalmente diferentes de discussão jurídica’ apontados por Alexy (Teoria da Argumentação Jurídica): o da ciência do direito, e o que existe nos meios de comunicação. Lacradores, opinizeiros e outros búfalos no que Ionesco (O Rinoceronte) chamou de ‘histeria coletiva’ romperam filas e criaram estrupos (r) ideológicos, andando em bandos e repetindo mantras próprios dum psicodelismo pós-moderno do tipo ‘fulano está rasgando a Constituição’; ui, rsss. Detalhe: fulano pode ser um jurista especializado, com obras publicadas e reconhecidas precisamente em Direito Constitucional. Dane-se tudo isso, nada importa para um rinoceronte que quer grunhir e derrubar mesas de bares por onde passa.

Mas, o pensamento competidor e disputal, admita-se sloterdijkianamente, para um chinfrim ser endotérmico moralista como o homem, vaidosamente autointitulado ‘abençoado’ por alguns em férias com si próprio e com a razão, e biologicamente defeituoso ou involuído, conforme Rumjanek (Ab Initio) com suas próstatas masculinas hiperplásicas ou cruzamento das vias respiratórias e digestivas gerando engasgos com farelo de alimento, até que faz sentido.

Se o monstro somos nós, como sistematiza a filosofia, e nunca a idiotice de algum Lúcifer com rede de telemarketing oferecendo pecados a preço de liquidação, por que não se dar o que de melhor pode ser dado pelo ser humano? O ódio à inteligência, a negação da ciência e o preconceito para com o outro.

Watson (DNA) mostra que a jornada intelectual começa com Copérnico, retirando o egocentrismo humano do centro do universo e prossegue com Darwin insistindo que os seres humanos são meros macacos modificados. Finalmente parece ter se chegado aos lacradores brasileiros.

Uma ressalva. A dos rinocerontes e macacos referidos no texto. Deixemo-los de fora dessa vaidade sapiens na relação baconiana de que saber é poder. Alguns como Mama, a chimpanzé que, na velhice, dias antes de morrer, não mais conseguindo se levantar, reconheceu e sorriu amorosamente, antes de acarinhar a cabeça de seu ex-cuidador, o já também velho biólogo Jan van Hoff, conforme relato deslumbrante de Frans de Waal (O Último Abraço da Matriarca).   

A vaidade do chimpanzé se resume a enfeitar a própria cabeça com um ramo de alface, poesia cênica e adorável relatada pelo mesmo primatólogo Waal (A Era da Empatia). Já a do lacrador brasileiro é se arvorar à jactância do saber e à terra plana.

Então tá.

Jean Menezes de Aguiar



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