
As dimensões da vida são diferentes. Pelos idos de 1990, num pequeno churrasco em casa, ainda no Rio, em que a suntuosa atriz Iris Lettieri estava, numa hora reservada eu me acerquei dela e em filosofia de picanha cochichei: Iris, a vida é curta não é? Ela mudou o semblante, baixou o tom da voz, apertou meu braço e totalmente séria respondeu em segredo: é curta demais Jean! Eu que já lidava com Filosofia recebi aquela sentença quase que como uma ameaça, não a mim, mas a tudo. Aquela noção de finitude, até porque vinda de uma estonteante Iris, e mais velha que eu, era um balde de água fria nos arroubos de vida eterna que os jovens, eu ali pela casa dos trinta e poucos, todos temos e quase nunca questionamos.
Talvez a vida nem seja tão curta ‘assim’, talvez o que incomode seja a consciência de que ela não é eterna. Para quem não se dedica a filosofares é como já disse o pensador: na próxima encarnação quero vir ignorante para ser feliz, ou, no avesso, como H. L. Mencken em seu Livro dos Insultos, dizendo que nunca conheceu um filósofo feliz.
Pessoas brigam nas famílias, nas relações sociais, em todo lugar. Podem brigar, podem tudo. Algumas brigas não causam nada, até livram de certos estorvos, encostos e chatices. Mas outras deixam cicatrizes. Às vezes eternas, às vezes para depois da morte. Aqui o problema.
Tudo que não cabe em uma vida, e ficou para após a morte de alguém, como algo que deveria ter sido dito, confessado ou resolvido é um erro de cálculo. Deveria ter sido ‘acabado’ naquela vida. O cinema já filmou muito os arrependimentos pós-eternos, incuráveis que ultrapassaram alguém na relação e que, aí, esse alguém resolveu morrer. Não deu tempo de consertar, declarar, falar, ou, meramente viver. Continua-se vivo e não se pôde viver aquela situação, porque o conceito de vivê-la envolvia obrigatoriamente alguém que morreu, não existe mais.
Ainda há, no mundo, após o Iluminismo e a invenção da Razão – admita-se, que já saiu de moda na Filosofia-, quem acredite que quando morrer não vá virar colônia de insetos necrófagos e tudo vai acabar. Esses não morrem, ‘falecem’, num eufemismo gracioso, e certamente vão para um céu e ainda mais azul com santos, anjos e reencontros eternos. Darcy Ribeiro, saudoso cientista e ateu inveterado, ao leito da morte da mãe foi consolado justamente por ela, precisamente neste sentido. Ele aflito pela hora dela e ela tranquila e serena dizendo que ia para o céu, para ele não se incomodar. Darcy contava aquilo gargalhando e agoniado.
Aí um amigo, mais que fictício, me conta que a filha brigou com ele, de novo. A segunda briga na mesma vida. A primeira durou dez anos, ela nega o tempo, diz que não foi tanto assim. Um escapismo de atenuação, defesa ou apaziguamento. A segunda já vai quase um ano. A filha, uma briguenta inveterada, no sentido politizado do termo, o pai, um já curvado pela tal vida que se aproxima do final.
Uma das diferenças entre o jovem e o velho é a consciência. Ambos vivem contemporaneamente a mesma vida e se dão, se relacionam juntos nela. Mas ao jovem não passa a ideia da finitude, afinal ele tem 5 mil anos pela frente e a vida não lembra a ele, fisicamente, esta finitude, salvo exceções tristes de jovens que são ou ficam seriamente doentes e têm antecipada a consciência da finitude. Ao lado da morte, esta trágica consciência da finitude no jovem, pela doença ou fim anunciado, certamente é o outro grande erro da vida.
Assim, não tendo aquela filha a mesma consciência daquele pai, as visões de mundo são completamente diferentes. Ela não morrerá nunca e terá os tais 5 mil anos para ‘resolver’ os problemas com ele. Já ele sabe, e foi lembrado pela mesma vida, que pode não dar tempo. São as histórias daquele famoso e dilacerador livro Ah Se Eu Soubesse.
Mas será que os consertos, as declarações, os amores e os encontros são mesmo para serem vividos ‘nesta’ vida de quem, por exemplo, consegue ler este artiguinho e, por isto mesmo, está vivo? Depende da rusga. Há brigas que se mostram perfeitamente melhores se forem eternas. Aquela ideia meio cristã, meio piegas, de um ‘perdão’ ilimitado – e autoritário de que tudo precisa ser perdoado- se mostrou apenas pueril, numa razoável evolução de uma vida razoavelmente intelectualizada que se resolva ter.
Percebe-se que esse conceito velhusco e ultrapassado, para muitos, da intelectualidade atrapalha algumas felicidades, ainda que Sófocles (Antígona), ensine há milênios que ‘ser inteligente é a parte principal da felicidade’. Ah, a inteligência! A parte quase que mais até sexualmente sedutora do ser humano.
Assim, algumas brigas podem fazer parte da vida, caberem nela, ser próprias dela. Há pais que traem filhos seriamente, roubam, ameaçam de morte e danificam relações de uma forma severa e eterna. Já outras brigas são apenas autoritarizadas, passam por valores punitivistas, verdadeiras censuras morais de gente que acredita que nunca erra. Em muitos casos este costuma ser um traço da juventude, noutros das velhices que não conseguiram evoluir.
Acabei dizendo ao amigo para se resignar sobre a filha. Este como tanto outros ‘conselhos’ – que forma autoritária de conversar- têm tudo para estar errado. Mas talvez o amigo se deprima e apenas morra aceitando a natureza da filha, ou das coisas. ‘Temos’ filhos nossos até que idade? Este questionamento com mania de filosofar sobre tudo pode ser extremamente cruel, mas quando os filhos se tornam adultos e deixam de ‘precisar’ da orientação dos pais, em certa medida, ali perdemos eles.
O amigo leu este esboço de artigo e disse que iria pensar e talvez resolver que tivesse, sim, ‘perdido’ esta filha. Eu disse para ele não ser tão drástico assim. Pessoas costumam gostar de panos quentes, ainda que farisaicos. Mas meu amigo se mostrou convencido. E eu acabei me questionando se esta mania de filosofar não é uma grande porcaria.
Jean Menezes de Aguiar.
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