Esta semana se agravou a discussão das biografias não autorizadas. Livros que esmiúçam e revelam a vida de pessoas públicas, vivas ou mortas. O próprio biografado ou sua família, em alguns casos, não gostam de ver segredos trazidos a público. Correm para a Justiça, pedindo liminares para bloquear a publicação ou a venda do livro. É censura? Pois é, parece. Mas o tema é dos mais difíceis no Direito.
A questão não é nova. Discute-se a liberdade de expressão intelectual de um lado e de outro, a intimidade. Ambas garantidas pela Constituição de 1988. Qual “vale” mais? Cantores de MPB resolveram opinar. Para espanto geral, artistas que lutaram a favor da democracia se opuseram contra a liberdade de expressão de autores biógrafos. É o caso de Caetano Veloso que podia dormir sem a carta aberta, na Folha de SP (9.10.13), que recebeu de Benjamin Moser, autor da biografia de Clarice Lispector. Parece que o “Caetano engajado” não vem acertando muito.
Biografias não autorizadas, algumas, já geraram ações judiciais barulhentas. E soluções que demoram muitos anos. Roberto Carlos que o diga. Pertencem a um estudo complexo do Direito. Originariamente no Direito Civil, com uma visão mais privatista ou comercial. Mas depois o tema foi elevado para o Direito Constitucional, com um cunho mesmo de direito fundamental e protegido como liberdade de expressão. Aí se tornou parte integrante do complicado capítulo da “interpretação constitucional”, área que muita gente boa e conhecida acha que é só “ler”.
O tema coloca em confronto dois princípios protegidos constitucionalmente. A “liberdade de expressão artística e intelectual”, Constituição, artigo 5o, inciso IX, e a “intimidade”, inciso X. Quando isto ocorre entra em cena uma teoria chamada “ponderação”, afinal há duas soluções possíveis, mas antagônicas, para um mesmo caso concreto.
O jurista e filósofo alemão Robert Alexy, um dos estudiosos centrais da ponderação ensina: “À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis.” Assim, Roberto Carlos quis preservar sua intimidade proibindo sua biografia; e o autor que pesquisou a sua vida e quis publicar a biografia queria ver garantida a liberdade de expressão intelectual. Aí está o antagonismo inevitável. Qual deve prevalecer?
A Constituição da República que criou o Estado de 1988, impôs novidades complexas e difíceis à chamada sociedade pós-moderna. Passou-se a ter, “então”, o Direito Pós-Moderno. A Constituição, que todo mundo deve manusear, é bom, esconde critérios e princípios que muitas vezes frustram quem a lê apenas gramaticalmente. No dizer do grande jurista português Gomes Canotilho, a Constituição é “dirigente”, com “normas abertas”. Isso fica parecendo apenas um dado abstrato, mas o certo é que ela contém uma imensa “força normativa”. Ela é uma direção, mas também é um “como chegar lá”.
Até para profissionais do Direito, o estudo da interpretação e da ponderação é difícil. Quanto mais para o querido Caetano Veloso. Muitos por aí querem que a Constituição seja imbecil, imprestável, imprecisa ou inconsertável. Mas não é. Essas teses reacionárias são conhecidas. Ninguém menos que Eros Grau tem uma frase importante: “não se deve interpretar a Constituição em tiras”. Todo o problema da Constituição, percebe-se, está na interpretação.
Quando se aplica tudo isto às biografias o tema explode. Figuras ilustres querem garantir a qualquer preço sua intimidade. Só “permitir” um livro biográfico se “autorizado” por eles próprios. Ou familiares, se já morto o biografado. Isto cheira a uma censura prévia das mais odiosas. Neste lado está Caetano, e não só ele. Dizem, estes, que os biografados ganham rios de dinheiro com seus livros. Como se o mercado literário brasileiro fosse assim. Mas qual é o problema de o autor, após exaustiva pesquisa que costuma consumir anos, ganhar dinheiro? Que “implicância” é esta agora com o dinheiro?
Como resolver o impasse entre a intimidade e a liberdade de expressão intelectual? Juristas de todo o mundo vêm utilizando critérios seguros e práticos para saber qual princípio em um determinado caso concreto deve prevalecer. Em resumo: 1) se o fato íntimo já é de conhecimento público, por publicação anterior, não deverá valer a intimidade. 2) qual é a repercussão emocional do fato sobre o biografado. 3) qual a importância do fato para a formação da personalidade do biografado. 4) se há envolvimento de terceiros no fato. 5) qual o formato de apresentação do fato, mais ou menos sensacionalista, além de outras características jurisprudenciais que vão sendo desenhadas.
A relação acima, que é um indicativo, está no excelente livro de Anderson Schreiber, Direito civil e constituição, 2013, p. 457. O juiz, na análise de um caso concreto, sempre levará em conta questões dosimetradas como estas. Mas como grande pano de fundo entra a “ponderação jurídica”. Uma metodologia utilizada no Direito com sentidos milimétricos entre valores, conceitos históricos, vidas envolvidas, modos de abordagem e interesses potencialmente antagônicos em pauta.
Uma coisa é certa no Direito: não há “direito absoluto”. Defensores da intimidade não podem invocá-la em toda e qualquer situação como sendo “a sua vida” que está em jogo para impedir uma publicação. Nem autores biógrafos podem querer que em todos os casos a liberdade de expressão vença. Se há um lado mais forte, isto é muito importante, é o da liberdade de expressão, não há dúvida. Por isto, Caetano Veloso optou por um lado velhaco, e ruim. Podre mesmo.
A liberdade de expressão, mesmo não sendo absoluta em nenhum regime jurídico do mundo, tem alguma primazia quando comparada, simplesmente, à intimidade. Principalmente de pessoas “públicas”. O lado da liberdade de expressão, por exemplo, não se parece em nada com regimes ditatoriais, nem pode ser acusado de censura. Pode, sim, enfrentar acusações de sensacionalismo e mentira. Mas um biógrafo sério jamais se entregaria a estes vícios.
Há no Direito profissionais avançados e conservadores. Modernos e retrógrados. Talvez Caetano tenha ouvido alguém do lado “careta”. Ou pior, não tenha ouvido ninguém. Mude Caetano, você é importante para o movimento. OBSERVATÓRIO GERAL.
[Artigo republicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS, GO – Jean Menezes de Aguiar]
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