A crítica e a reclamação

Você apenas produz críticas internas, suas, ou parte para reclamar efetivamente de alguma coisa que lhe desagrada?

A diferença entre ambas as personalidades é bem acentuada, principalmente no crítico que não precisa exteriorizar a crítica, porque o mero fato de sua construção mental lhe basta, como um pensamento conclusional sobre algo ou alguém. Assim, considerando-se este crítico ‘interno’, nem todo mundo que pratica a crítica, reclama para o mundo; e nem todo mundo que reclama consegue produzir uma crítica estruturada.

Relativamente a quem reclama, há um paralelo imediato sempre muito vivo: o chato. E invocando Oscar Wilde, encontra-se: ‘Um chato é um homem que nunca é rude – sem querer.’ É precisamente o caso de quem vive reclamando de tudo.

Vê-se que a crítica e a reclamação são coisas bem diferentes. Se a crítica é uma produção interna, ainda que exteriorizável, nascendo como juízo de valor mais para o consumo do próprio crítico; a reclamação é produção que já nasce intencionada ao exterior, a alguém, visando mesmo a afetar o Outro ou uma situação. Quem reclama não quer apenas pensar criticamente, mas comunicar a alguém uma reprimenda sobre uma dada situação, em regra de forma a gerar incômodo, ou produzida de modo moralista ou repressivo mesmo.

A crítica pode ser um prazer autoconsumível, que se presta a um exercício teorético ou filosófico de uma situação que se submete a funcionalidades pacíficas, ainda que podendo ser concebida efetivamente com tonalidade radical e agudizada por juízos demolidores, e tudo internamente. Ou, pode ser objeto de um prazeroso jogo de troca de opiniões e percepções com outro crítico. Já a reclamação é a busca de uma afetação no Outro. Mas aqui, ao mesmo tempo paga-se o preço por um também estorvo vivido que compromete o estado de espírito do reclamador pela verbalização punitivista do Outro ou da situação. A crítica pode permanecer absolutamente secreta; já a reclamação visa ao atingimento de quem se quer mudar, exemplarizar, segundo um juízo de valor do próprio reclamador.

Se a crítica não estressa o operador, podendo mesmo ser uma descarga de alívio ou prazer – até cínico-, exercício mental para consumo mais interno que, todavia, pode atender perfeitamente ao crítico pela mera possibilidade de elaborá-la – o que já é um exercício refinado de pensar-; a reclamação por ter que ser dirigida à vitima ou a uma situação cria um ambiente lastimável e pode chegar a uma rusga relacional.

O crítico pode ser um jogador sempre vitorioso, se silencioso, porque ‘trai’ o objeto analisado, não lhe revelando o que pensa. Já o reclamador busca, em qualquer medida, um clima de discórdia porque precisa dizer efetivamente à sua vítima, sua vontade de desaprová-la e recriminá-la, ou à situação, o que em muitos casos gera dissensões.

Conviver e privar dos ‘segredos’ de um crítico pode ser algo bem interessante, em termos de se apurar pensamentos e olhares, percepções e conceitos; já conviver com um reclamador costuma ser um peso e um desagrado diário, vez que este costuma ser um atrator de problemas. Se o crítico costuma não deixar passar uma situação para até decantar em prosa e verso, e com algum lirismo, a sua crítica mordaz, sem se dirigir ao objeto analisado, o reclamador tem que conseguir fazer a sua vítima saber que ele está incomodado e quer reclamar da pessoa ou da situação.

Ainda, o crítico pode ser lento, metódico e perfeccionista nas análises, vez que costuma manter a crítica viva para aperfeiçoá-la noutras situações semelhantes, extrair princípios e criar bases epistemológicas para suas críticas que deem segurança para a continuidade de sua arte, ou seu jogo interno de prazer. Já o reclamador é episódico e pontual. Como parece portar um furor de incômodo em si, pronto para eclodir a qualquer desagrado, exerce a  zanga sem grandes inferências teorizadas e sempre desvinculadas de outros episódios anteriores, vez que a reclamação só nasce de um episódio externo e fático, enquanto que a crítica apenas aproveita o episódio externo para trazer à tona toda uma principiologia já pertencente ao usuário, com ferramentas conceituais a serem usadas nas próximas críticas.

A expressão ‘fulano reclama de tudo’ denota um cansaço de quem assiste reclamações em constância, um convívio que efetivamente cansa mesmo. Já o crítico pode até ser um Muttley que rosna e resmunga o tempo todo, mas costuma ter mais interesse em exercitar internamente suas ideias críticas do que exteriorizar brigas por meio da reclamação ou atrito à pessoa ou à situação inadmitida.

Críticas podem ser sofisticadas, intelectualizadas, sistêmicas e científicas; mas também vaidosas, espumosas, fúteis e ociosas. Nos primeiros casos, permitem o aproveitamento de conceitos e princípios para usos otimizados futuros. Nos segundos casos, se exteriorizadas, costumam ser preconceitos ou volúpias tolas que não interessam para qualquer análise. Mas a reclamação, por ser episódica e nascer de um objeto externo e pontual, é invariavelmente customizada e dificilmente aplicável a outra situação.

Não é todo mundo que gosta de crítica e de críticos, e mesmo que aguente conviver com uma pessoa crítica que, em muitos casos costuma cochichar suas visões com alguém na intimidade, o que pode se tornar cansativo para quem tem que conviver com isso. Mas conviver com um reclamador externo que busca vociferar tormentas a cada virada de esquina é incomparavelmente pior, vez que nutre certa predileção pelo distúrbio.

Por fim, o crítico tem condições de perceber que está sendo um chato, se ficar repetindo suas teorias com quem convive, pois ele tem a capacidade de perceber sua própria chatice por meio da própria crítica e concluir, por exemplo, que está sendo um mala. Muito pior é o reclamador, um criador de indigestões sociais que se acha correto em tudo e não desenvolve um senso crítico da própria existência brigã.

Com a crítica se aprende e se pode aprender muito, pois vive-se ‘teorizando’ coisas, e melhorando olhares e percepções; já com a reclamação só se pratica o rechaço a alguma coisa, uma forma de chatice comissiva e projetada. O reclamador é invariavelmente uma pessoa chata, destas que costumam se achar absolutamente certas em tudo, com respostas imediatas para tudo. Em um sentido espumoso da moda: um ‘lacrador’, ou seja, um dos ótimos exemplos para um crítico silencioso, sorridente. E sábio.

Jean Menezes de Aguiar.



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