O desastrado – e talvez criminoso- caso do empresário que atirou no assaltante já caído e rendido por um policial, em 26 de agosto de 2022, em São Paulo, mesmo depois de dar vários tiros no bandido e errando, acertando vidraças de comércios, retrata coisas graves e erros ideológicos, juridicamente estapafúrdios, ligados ao uso da arma de fogo e à Legítima Defesa.
As imagens na Internet mostram o empresário chegando de carro, um Porsche, após sofrer tentativa de roubo, à cena do assaltante caído no chão com sua patética arma de brinquedo. O empresário para o veículo, corre em direção ao assaltante que já estava parcialmente abatido por um correto tiro na perna dado por um policial que deu voz de prisão ao bandido, fazendo cessar completamente a agressão criminosa. Aí, surpreendentemente, o empresário dá a volta, esquivando-se do policial e atira no peito do assaltante que estava caído no chão. Para sorte do empresário, ainda que ele pense diferente, o assaltante não morreu.
Toda e qualquer situação de assalto à mão armada e/ou de reação a ele, sabe-se, é extremamente estressante e crítica, e não pode ser ‘julgada’ levianamente. Quando há imagens de vídeo, tudo fica um pouco mais claro, mas mesmo assim cabem reservas e cuidados.
Preso em flagrante por tentativa de Homicídio, o empresário alegou Legítima Defesa, o que não foi aceito pelo delegado de polícia, iniciando-se o procedimento investigatório por Homicídio na forma tentada. Como se não bastasse, soube-se depois na imprensa que o Ministério Público já o denunciou criminalmente, ou seja o empresário deve se tornar réu num processo judicial, por tentativa de Homicídio e Porte Ilegal de Arma, dois crimes para lá de graves. Ele ficou e continua preso.
Há lições a se tirar do caso. Até para justiçadores de plantão que passaram a adotar a visão de mundo de que ‘matar vagabundo’ é um prazer, talvez influenciados por um jornalismo policial vespertino que gosta de repetir que ‘bandido bom é bandido morto’. Esta ideologia que parece ser esperançosa do vingatismo, do exemplarismo ou do punitivismo de meliantes, retrata um modo de vida, cá entre nós, financeiramente bem caro e tormentoso. Estima-se que sair matando assaltantes custe, sim, muito dinheiro, com advogados e defesas. Além de gasto de tempo nos tribunais, saúde, noites pessimamente dormidas, possibilidade de prisões, afastamento da família e amigos, risco de ser condenado criminalmente e a trágica e única experiência de se viver, pessoalmente na própria pele e mente, o sistema prisional brasileiro, certamente a pior situação humana existente neste Brasil de ladrões urbanos.
Publiquei no site Migalhas um artigo jurídico intitulado ‘Matar em Legítima Defesa, OBA!’ (https://www.migalhas.com.br/depeso/354545/matar-em-legitima-defesa-oba) com análise detalhada sobre as dificuldades e os pressupostos jurídicos para se conseguir alegar, com alguma firmeza e correção, o que no Direito Penal se chama excludente de Legítima Defesa, exatamente a possibilidade de se rechaçar uma agressão ilegal com outro ato de violência, só que legítimo e legal. Nos tribunais, nunca foi simples e fácil a Legítima Defesa. E não basta se jurar que a reação foi em Legítima Defesa. Ela tem que ter sito, verdadeiramente de fato em Legítima Defesa, para quem tem o dever de analisá-la.
Há quem viva repetindo, agora, que assaltantes ‘merecem’ morrer. Até publicando isso em suas redes sociais (é impressionante como tem gente que gosta de produzir prova contra si). O problema é ‘como’ o Direito interpreta este tal ‘merecimento’ anunciado, desejado. Matar alguém com base nesta ideia, e não sob uma situação extremíssima de paralisar uma agressão ilegal e concreta, seguramente dará problemas jurídicos para o vingador de plantão. Quem insistir neste erro idiotizante, achando que pode matar porque bandido merece morrer está fadado a sofrer consequências graves e perder coisas valiosas na vida.
Mostra-se lógico e óbvio que os CACs – caçadores, atiradores e colecionadores de armas- tenham porte de arma – gênero, como passaram a ter (!)-, ainda que para transitar geograficamente relativamente às 7 atividades (!) previstas no Decreto 10.629, artigo 5º, § 3º, que autoriza o porte, para: treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate, e não somente como se pensa equivocadamente (!) num suposto trajeto casa-clube-casa. Fiz uma análise detida destas 7 atividades legais e seus possíveis locais no artigo intitulado Abordagem Policial CAC e Direito, no site Migalhas (https://www.migalhas.com.br/depeso/359701/abordagem-policial-cac-e-direito) e aqui no Observatório Geral (https://observatoriogeral.com/2022/03/04/abordagem-policial-cac-e-direito/).
Entretanto, o primeiro a ter que cumprir a lei, rigorosa e precisamente será o próprio CAC, este mesmo que se gaba – e está certo- de ser periodicamente fiscalizado pelo Estado e ter a seu favor uma presunção especial (!) de licitude, ante as diversas e periódicas certidões de bons antecedentes, em várias esferas oficiais.
Misturar o porte de arma (denominado de ‘trânsito’) do CAC, com ideologias estapafúrdias de se tornar um justiceiro de bandidos, é pôr a própria vida legal e correta do CAC num modelo pouco inteligente de gestão, com consequências jurídicas, pessoais e financeiras imensas.
Toda (!) relação jurídica no Direito brasileiro passou a ser regida, expressamente, pelo princípio da boa-fé. Isso quer dizer que o Direito não tolera malandros, espertos, mentirosos, oportunistas e todos esses de má-fé que achem que podem matar, porque bandido ‘merece’ morrer e depois ‘basta alegar Legítima Defesa’. Quantas vezes se fizer isso, problemas haverá.
Reentrou no Brasil, legalmente, por uma fresta governamental que pode ser que até nem dure muito se Bolsonaro não vencer, uma difícil cultura do armamentismo. Difícil porque há quem aprove, e há quem desaprove. Esta situação talvez esteja por um triz. CACs, se quiserem que o armamentismo perdure, como se diz popularmente, precisam ‘ter juízo’, e não sair por aí cometendo ilegalidades e fazendo justiçamentos.
Lula, Ciro ou Simone já deram a entender que se eleitos poderão rever a situação do armamentismo. Mas todos terão, obrigatoriamente, que respeitar o direito constitucional de propriedade, conjuntamente com sua garantia, próprios do regime capitalista. Arma é um bem, comprado com nota fiscal, e muitos confundem ‘licença’ com ‘autorização’. Assim, não existe o risco vulgar de que o novo governante possa ‘tomar’ armas de alguém. Como também qualquer governo será obrigado a respeitar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, outros dois princípios severos da Constituição, relativamente a clubes de tiros e o que mais estiver constitucionalmente protegido por estas rubricas poderosas.
Acaba de sair hoje, neste friorento 5/9/22, decisão de Luiz Edson Fachin, do STF, afetando compras futuras de armas e munições, situação que, juridicamente, sempre se soube possível entrar em circulação. Assim, podem existir impedimentos futuros, nunca retroativos em relação a licenças (ato administrativo vinculado e definitivo), que não são a mesma coisa que autorizações (ato administrativo discricionário e precário).
Se o CAC passou a ter a condição de, porque tem porte de arma nalgumas situações, reagir estritamente (!) em Legítima Defesa a uma situação gravíssima de vida ou morte, seria recomendável que estudasse o instituto da Legítima Defesa, seus princípios, requisitos, funcionalidades etc., exatamente para, numa situação extrema, não fazer bobagens, cometer crime. Pesquisar fontes confiáveis, autores sérios e literatura especializada pode ser um bom início.
Estima-se que o CAC inteligente aproveitará com responsabilidade estes novos direitos, e os saberá manter. Até para contradizer uma estridente imprensa fantasmática com o armamentismo, que mente em números e torce para que os CACs comecem mesmo a assassinar a população brasileira.
O momento, em relação aos delicados direitos conquistados, é de atenção e cuidado, inclusive com o que se escreve nas redes sociais, que poderá ser usado judicialmente contra a própria pessoa. Juízo, rapaziada.
OBS. Porte de arma é gênero, de que porte de trânsito é espécie. Todo porte de arma tem limitações, inclusive o porte de policiais e militares. Assim, não é juridicamente errado dizer que o ‘porte de trânsito’ do CAC seja um ‘porte de arma’, em absoluto. Se não for ‘de arma’, seria um porte de quê, de prancha de surf? Portar arma é autorização para pronto emprego. Há quem exija um preciosismo terminológico na diferença. O Sinarm concede um porte pessoal, com limitações; e o Exército concede um porte também pessoal, igualmente com limitações, outras. Ambos são, obviamente, portes ‘de arma’.
Jean Menezes de Aguiar
Categorias:Direito e justiça