(foto-OG). Isaac Asimov (Antologia, 2, p. 164), respondendo a um leitor que se dizia especializado em literatura inglesa e que julgava precisar ensinar um pouco de ciência a ele (Asimov), afirmou: “Infelizmente, nada disso era novidade para mim. (Muito pouca coisa é novidade para mim; gostaria que meus correspondentes se dessem conta disso)”.
Nos tempos patrulhados atuais em que ninguém mais pode dizer o que efetivamente é, ou seja, todo mundo é obrigado a ser humilde e se equiparar a uma massa de medíocres, Asimov seria linchado. Veja o que a imprensa fez com os jogadores de futebol: todos dão o mesmo tipo de declaração, respeitando o adversário e jurando uma humildade quase que de joelhos. Saudade dos jogadores marrentos que não podem existir mais como Paulo Cesar Caju, Romário e outros, que mandavam todo mundo se foder e pronto.
Robert Michels que propôs uma “sociologia da boêmia”, ensinava ser uma etapa da vida dos jovens caracterizada pela pobreza, liberdade e ódio à burguesia, isso, ali durante a Grande Depressão. Dizia que estes intelectuais eram rigorosamente excedentes, a sociedade produzia mais que o exigido, veja que impressionante. Já autores como Russell Jacoby, ensinam que o que alimenta a boêmia são os meios urbanos precários, com ruas movimentadas, restaurantes baratos, aluguéis razoáveis e arredores decentes. Este podia ser considerado o quadro da boa e velha Copacabana dos anos 1950 e 1970. Vamos deixar de fora a famosa década perdida (1980).
Mas boêmia e intelectualidade estão ligadas? Parece que sim, segundo vários pensadores influentes. E se houve um declínio histórico da boêmia, houve um paralelo da intelectualidade. Jacoby sentencia que o declínio da boêmia não foi gerador apenas da intelectualidade, mas da “inteligência urbana”. Num recorte para o ano de 1948, Milton Klonsky vocifera que “o dinheiro reina absoluto” e o lema estúpido dos negócios americanos era: “Quanto ele ganha?”. Daí à certeza de que o sucesso irá matar a boêmia (Klonsky) é um pulo.
A revolta contra o conservadorismo e o convencionalismo que houvera marcado Greenwich Village cedera à abundância do dólar. Ficaram os “círculos de jazz e drogas”, e os hippies a resmungar e a evocar uma vida à margem ou contra a sociedade. O etos boêmio se perdera ali. Oscar Wilde disse que ”jamais vira boêmios tão bem vestidos, bem alimentados e prósperos”.
Essa primeira metade do século 20 ficou momentaneamente “anestesiada” com a II Guerra e mesmo com o final da década de 1940 e seus bancos e agências de fomento internacionais. Já em 50 parece ter havido um reflorescimento que culmina com 1959 na revolução cubana, um alento ao relativo marasmo cinquentista. Dá-se toda uma resistência a partir daí nas décadas seguintes até a neotragédia que é a invenção do consumismo e a pasteurização das culturas pela globalização já recentemente.
Talvez se possa falar, a partir dos anos 1980 numa nova queda da boêmia e da intelectualidade que se formara como resistência às ditaduras, principalmente do Cone Sul. Está-se falando aí num segmento geracional, devendo-se ouvir F. Scott Fitzgerald: “verdadeira geração tem seus próprios líderes e porta-vozes e traz para sua órbita aqueles nascidos logo antes e logo depois”. Lindo, mágico. A geração do pós-Guerra teve essa cara, capitaneada por Sartre. A hippie teve outra cara, inclusive com os indianos pacifistas e o sexo livre. Havia modelos, expressões, personalidades e constructos humanos, não a tecnologia que vem pronta pela Tim ou pela Claro. As coisas davam trabalho, exigiam “pensar” – nada de saudosismo viu? Mas é um fato, daí burrificamos. “Ser” era uma atividade hercúlea. “Produzir” era um feito medido e reconhecido pela qualidade, não pelo lóbi. E qualidade, vamos combinar, era Chico Buarque e Tom Jobim, figuras simplesmente incontestáveis, e outros iguais. Quem ousaria? Além de lindos. Não esses cocôs cantam em dupla com calça enfiada na bunda.
Atrás dessa personalidade de uma época ou geração é que Malcolm Cowley dispara que o Village não era “apenas um lugar, um estado de espírito, uma forma de vida: como todas as boêmias, também era uma doutrina”. Aí há-se cessar. Não há mais doutrinas, há o hibridismo.
A doutrinização já vinha de tempos atrás, com o agudo de a American Tobacco Company contratar Edward Bernays, sobrinho de Freud, para teorizar o fumar pelas mulheres, dizendo que o ato de fumar representava o erotismo oral sublimado. Isso para 1929 era um show.
Não temos mais doutrinas, a não ser a do consumo, e as fundamentalistas religiosas – ô gentinha chata (e perigosa). Não temos mais ícones a não ser os pós-modernos que a mídia descarta anualmente, e não temos mais amor e romantismo, como reclama Bauman, não em causa própria, pois vive um casamento invejável de 70 anos de duração.
Quando a boêmia virou “contracultura” (Jacoby), fodeu tudo. O mundo está fake, bobo, primário, buzinando nervoso no trânsito, e só sabe reclamar vaziamente.
Faltam coisas ainda. Escarros e gozos; salivas trocadas e abraços apaixonados; poesia e sonho. Talvez noutra hora eu tome coragem para mostrar esse lado falsificado meu tão presente. Beijos. Jean Menezes de Aguiar.
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