Texto de Joel Formiga, cientista político, para o OBSERVATÓRIO GERAL, discutindo o problema da morosidade processual no Poder Judiciário como fator de injustiça. A questão do tempo consumido para a exigência constitucional de se chegar ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória no sentido de alguém ser considerado culpado. Confira. OG.
Carta aos amigos juristas
Caros letrados juristas a quem escrevo, quero começar por dizer que nada sei, nada entendo dessa sua arte ciência que é o Direito. Portanto, não arrisco nenhum argumento que tenha qualquer embasamento técnico jurídico. Quero, ao contrário disso e longe das tecnicalidades, chamar sua atenção para o que eu acho que nós, cidadãos não juristas, esperamos da Justiça, essa com “J” maiúsculo, entendida aqui como entidades, órgãos, conjunto de leis, juíes, regulamentos, promotores, processos, sentenças, acórdãos e afins. Nós esperamos apenas justiça, essa com “j” minúsculo, mesmo, essa que o povo sabe identificar e pela qual clama em alto e bom som, para ouvidos surdos daquela com “J” maiúsculo.
“Ah, meu caro Formiga, já começas enganado, pois a Justiça que praticamos quase nada tem a ver com a justiça que você busca, mais que ser aquela uma mera sombra efêmera e difusa dessa”.
Pois me parece que na certeza de não serem completamente justos, alguns juristas simplesmente desistiram de tentar sê-lo. E para preencher o vazio deixado por tal desistência, se apegam com o afinco de suas últimas forças morais a um aspecto justo da nossa Justiça: os direitos dos réus à ampla defesa e a um julgamento justo (ou melhor, vários) – imaculadamente inocentes até julgados culpados em ultimíssima instância.Coroa tais juristas de razão a memória da ditadura, quando esses direitos eram aviltados, tão viva essa na mente dos que rondam os 50 anos – a idade do prestígio.
Tal defesa dos intocáveis direitos dos réus ganha força na miopia do unilateralismo argumentativo. Tive a paciência de ouvir o célebre – ainda que nada célere – e riquíssimo voto do ministro Celso de Mello aceitando os embargos infringentes no julgamento do Mensalão. 2:30 h de argumentos irrefutáveis que foram do tempo romano aos atuais, do que é justo ao que é tecnicamente correto. Impecável, mas incompleto. Ignora a necessidade de celeridade nas decisões da Justiça, ou o fato de que réu condenado mas solto constitui uma ameaça à sociedade.
Já não se trata aqui de acusar a Justiça de ser desigual, de proteger os poderosos – embora sim o seja. Mas há uma certa igualdade na incapacidade da Justiça brasileira em condenar ao ponto de punir criminosos das mais diversas classes socias – motoristas irresponsáveis, ladrões de galinha, latrocidas, políticos corruptos, estupradores, fraudadores, traficantes, contrabandistas – todos comungam da perspectiva quase segura da impunidade decorrente da morosidade e incapacidade produtiva da Justiça brasileira.
“Mas o povo acha que justiça é sinônimo de punição?”
Exatamente ! Punição dos culpados, claro, mas punição! Só essa certeza pode dar aos cidadãos de bem a necessária sensação de segurança para a vida harmoniosa em sociedade, e aos cidadãos do mal o receio que refreia seus piores instintos – sabendo-nos todos e cada um ao mesmo tempo “de bem” e “do mal”.
A condescendência com que a Justiça brasileira trata acusados e condenados em várias instâncias, deixando-os livres para praticar os crimes aos quais já se monstraram propensos, além de roubar das vítimas dos crimes cometidos o direito a ver feita justiça, vem servindo de condenação à próxima vítima. Cidadãos inocentes sofrem perdas materiais, traumas e perdem suas vidas para criminosos com numerosas passagens pela polícia, o que nos leva a pensar que deveriam ter ficado por lá – presos.
Mas Formiga, nossa Constituição assegura que todos somos inocentes até transitado em julgado, não se pode aplicar nenhuma pena até então”.
Se é que é isso mesmo que diz nossa constituição – o que eu tenho as minhas dúvidas – então me desculpem aqueles que tratam a carta magna de 1988 como se fosse uma bíblia escrita pelo Criador ele próprio, inquestionável e inalterável, mas ela está equivocada! Errada! Não serve aos interesses da nossa sociedade. Tem que ser mudada.
Falta aos homens e mulheres que conduzem os rumos da nossa Justiça (“J”) a humildade para reconhecer a absoluta incompetência do sistema judiciário em produzir em tempo minimamente razoável o tal “transitado em julgado” para uma fração que seja dos crimes cometidos nesse país. Essa é uma realidade – se mutável ou não pouco importa, mas até que se a mude – que precisa estar considerada no processo de busca de justiça (“j”) pela Justiça (“J”).Não estariam soltos em nenhum país descente de primeiro mundo os acusados ou julgados que aqui transitam livremente pelas ruas.
“Mas em um país em que boa parte da população é pobre o direito penal deve ser moderado, deve ser pequeno, para não se criminalizar a pobreza. (…) Precisamos evitar a exacerbação das penas” (fala do Ministro Barroso do STF na sabatina do Senado).
Wrong again! É justamente nas regiões de maior pobreza, em que o Estado está ausente e o direito penal é minúsculo, nessas terras sem lei é que os pobres sofrem mais as consequências desse Direito minimizado. Basta frequentar uma favela para ouvir o pulsante clamor por lei e ordem, para dar aos menos favorecidos oportunidades concretas de sucesso e progresso civilizado.
Amigos e amigas juristas, não desistam da justiça na condução da Justiça. Levem em conta também os direitos das vítimas de crimes passados e ajam no sentido de proteger as vítimas de crimes futuros, exercendo a obrigação de punir que lhes cabe. Essa atribuição vai além do simples direito de aplicar as efetivas penas cabíveis, sendo esse seu dever. Ao não cumpri-lo, a Justiça empurra os cidadãos para o uso das próprias mãos na busca pela justiça. Não é essa a sociedade que queremos para nós. O que precisamos é que nos seja assegurada a ordem para que nós – professores, pedreiros, padeiros, motoristas, médicos, tecelões, operários, engenheiros, bancários, banqueiros – cidadãos não juristas – possamos trabalhar pelo progresso e viver em paz.
Joel Formiga, cientista político.
Categorias:Cidadania online