Esta é uma história ficcional. Para quem não conhece os fatos, com certeza será. Para quem conhece, talvez não seja. Vai saber.
3 de setembro de 2012, no café da manhã, cedo, por volta das 9, toca o telefone. Estranho, ninguém me liga, nunca; gosto disso, prefiro digitar. É minha irmã. Esta mesmo nunca me ligou na vida. Aí eu ‘já sei’. Só pelo alô. Pergunto: papai? E ela – sim. Pego a filha que à época ainda me sobrava e vou direto para o aeroporto. Meu pai morreu igualzinho a ele, poderoso, pragmático, mas sobretudo inteligente, após ter vivido absurdamente muito em tudo que viveu.
No dia seguinte, 4, era dia de meu artigo semanal para o jornal. Não titubeei, saiu ‘Lições de um pai’. O texto começa assim: ‘Semana passada cogitei com uma das minhas filhas de escrever uma matéria aqui sobre o meu pai. Seria algo parcial, puxar a sardinha para minha brasa, difícil, reconheço. A filha achou a ideia ótima, claro. Mas não deu tempo de ele ler a matéria, ele lia todas e vibrava, mas esta não deu. Ele resolveu surpreender.’
No universo dos tios, meu pai foi um dos aventureiros invejáveis com a prole sobrinha. Mas o texto de hoje não é sobre ele, nem sobre os primos, assunto que dá um artigo inteiro. Hoje serão os tios. Claro, e uma crítica social porque ninguém é de ferro. Pois é, antigamente havia tios. Hoje a instituição virou uma mentira cínica. Se o tio fechar o tempo com o sobrinho é processado judicialmente pela irmã que instigará o marido a dar uma surra no irmão. Tudo porque molestou o sobrinho-nugget, aquela criança bichinha retratada tão magistralmente pelo Leandro Hassun no programa do Jô. Sublime Hassun.
Fui dormir anteontem a 1 da manhã, após assistir ao filma ‘Um dia’, e chorar seriamente não quando se dá a tragédia, antes, quando a estonteante Emma retorna para Dexter com toda sua certeza de amor, após deixar meu colega pianista francês a ver navios. E neste mesmo 5.10.16, acordei às 2 e meia após um sono profundo, ouvindo Gertrudo cantar. Sim, meu Gertrudo, ex-Gertrudes. Era galinha e virou galo. Como? O vendedor me vendeu como menina, foi criada com as outras 3 como mocinha e um dia começou a cantar e comer as irmãs, Ifigênia, Quitéria e Dengosa. O maior susto; galinha transexual, que legal. Bem, mas acordei assim e com uma autêntica inspiração: um título e um motivo de artigo, este ‘Os tios da minha vida’.
Não sei se todo mundo tem os tios de uma vida, os supertios, os tios amados, os tios mais legais do mundo e os que dão artigo pra contar. Mas eu posso garantir que tive, ou que assim os criei na minha cabeça. Uma coleção de não botar defeito para nenhuma família do mundo. E antes que algum filho-de-tio venha com coisas doces, controlemo-nos, meu artiguinho pode ser uma viagem na maionese.
Um desses foi o tio Zezinho. Como tio ele saiu fora rápido do pedaço. Morreu novo. Mas deixou os irmãos que não tive, pelo menos numa infância riquíssima de primos. Foi à Segunda Guerra e lá fez uma coisa inacreditável para uma criança dos anos 60. Tinha uma tatuagem no antebraço, azul, pequena, apenas com duas letras que marcavam o amor: MC. Sim, o amor para ele, as iniciais da irmã da minha mãe, a mulher dele. Tio Zezinho tinha precoces, fartíssimos e totais cabelos brancos o que lhe dava um charme especial. Talvez a mulherada caísse matando, mas minha tia muito alta e séria certamente sabia controlar a situação. Um dos filhos dele contou que se lembrava quando era muito pequeno e passava um avião, tio Zezinho se jogava no chão, como reflexo da Guerra. Conheci Araruama, RJ, por intermédio desse tio, era uma mansão cinematográfica de um amigo dele, à beira da lagoa. Fui algumas vezes com os primos. Décadas depois, secretamente passei pela casa, nunca contei a ninguém. Veio uma senhora distinta e me perguntou o que eu desejava. Apenas olhei e me vi num filme do passado impossível de voltar. Consegui reconhecer a propriedade e de novo me maravilhar como se fosse aquela criança, com aquele cenário. Esse tio foi um tio sério, acho que tínhamos um certo medo dele, mas não esse medo idiota psicanalítico que inventaram na educação ‘moderna’. Era o medo da admiração e da intangibilidade, de saber que ele era um cara meio inatingível, com suas camisas de manga comprida arregaçada até o cotovelo, lembrança que ficou de sua elegância pessoal. Tio Zezinho marcou a mente daquele garoto como um totem que devia ser.
Outro interessante foi e continua sendo o tio chamado Raymundo, médico verdadeiro de olho e sensibilidade, irmão de minha mãe. Fala-se por aí que alguém, talvez o pai dele, tenha corrido no cartório, quando ele nasceu, e registrado à revelia da esposa, minha avó, o nome ‘Alberto’ após o Raymundo. Assim esse tio teria um nome oficial e um nome ‘secreto’. Ou mesmo espúrio. Veja que barato, para um garoto de 10 anos saber essa transgressão do avô. Ele mesmo, meu tio, parece que nunca usou o ‘Alberto’, e olha que ele bem que se parece com um Alberto, seja lá o que isso possa ser. Esse tio, teve diversas passagens pela vida da família. Primeiro, por ser médico, salvou todo mundo da morte. Bem, se não foi da morte, foram resfriados, dores, contusões, arranhões etc. Comigo, particularmente, na minha longa vida de criança de rua, no Catete, Rio de Janeiro – antigamente esta qualificação era sinônimo de gente saudável, minha mãe vivia dizendo – vai pra rua brincar!-, foi quase assim, eu me acidentei. Ali pelos 7 anos de idade, caí e enfiei a testa num portão de ferro, abri uma janela na parte da frente da cabeça. Meu tio, cirurgião, não conversou, mandou quem estava em casa me segurar na cama e cerziu 6 pontos. Quando meus pais chegaram, a fatura já estava liquidada. Esse tio tinha os cabelos verdadeiramente muito lisos, nada de chapinha. A brincadeira dos sobrinhos e sobrinhas era ficar penteando ele, cabelos para um lado e para o outro, fazendo maluquices com sua cabeleira. E ele dócil e manso aceitava tudo. Parecíamos macacos filhotes cuidando daquele Deus, lindo e alto. Tio Raymundo jamais falou grosso com ninguém, nem com a própria prole. Evocava a lógica, como um pensador. Puxou ao pai. Era uma mãe. Como médico era simplesmente adorado nos hospitais. Eu de vez em quando ia visitá-lo no trabalho, saía encantado. Ele era tratado como um rei pela sua simpatia e amor democrático para com todos, principalmente os humildes, faxineiros, empregados em geral, gente que ‘autoridades’ e diplomados fazem questão de não cumprimentar. Meu pai mandava eu reparar aquele traço de personalidade nele como uma aula e um dever da minha educação. Ele não era desses médicos provincianos de hoje que imitam médicos de filme precisando usar gravata para vender confiança. Foi ele que me ensinou que a epistemologia da Medicina passa por 3 conceitos, anatomia, fisiologia e patologia. Dizia que isso era considerado ultrapassado nos estudos atuais, e que ninguém mais quer estudar anatomia a fundo. Ou ninguém quer mais estudar nada a fundo. Precisamente esta lição paradigmática da Medicina continua me sendo extremamente útil nas aulas de Metodologia Científica. Falo sempre desse tio aos alunos.
Tio Raymundo tinha gatos, aí um dia uma vizinha cretina – muitos têm vizinhos cretinos-, passou mal e chamaram ele para socorrer. Para sua tragédia, viu peles dos seus gatos pregadas na parede como decoração. A doida comia gato. Teve também um pato em casa, que criava. Um dia sua empregada Dalvina ou coisa parecida, serviu o pato no almoço. Ele se levantou e não almoçou, numa outra tragédia. Quantas tragédias assim há em nossas vidas? Tem razão Nietzsche quando se refere a ‘esse mundo-manicômio’ (O anticristo).
Tive também o tio Zão. Pra mim não seria ‘tiozão’, isso era pouco, e comum. Era o tio Zão. Sempre achei muito mais importante não o aumentativo, mas um nome próprio dado a este tio. O Zão. Este tio era completamente ligado às crianças, contava histórias, inventava coisas e tinha toda uma dedicação não piegas que efetivamente formou uma ideia inesquecível na cabeça de toda uma geração de primos e até filhos de primos. Pra mim ele tinha 2 metros de altura e pesava 150 quilos, medidas sabidamente falsas, mas as medidas da criança são assim; as crianças são loucas. Íamos todo ano para o Clube dos 500, na Dutra, entre Rio e São Paulo e tínhamos uma meia dúzia de famílias que iam todo ano no mesmo mês de férias. Aquilo era simplesmente lisérgico para toda aquela infância de primos. Durou mais de uma década. Equivaleu, para os primos, ao filme ‘Um verão para toda vida’. E esse tio Zão foi figura central ali. Em sua morte, o velório foi daqueles comoventes, gente aparecendo de todo canto, sobrinhos, falsos e verdadeiros, vindo de tudo que era lugar, ele realmente foi uma pessoa popularmente amada.
Infelizmente tudo mudou muito rápido na sociedade atual. Os filhos viraram ‘reizinhos’, as filhas, ‘princesas’ fantasiadas de tudo-rosa-choque-horrendo, talvez um desespero psicanalítico da educação atual para que a mocinha ‘continue’ mocinha. Oh dó. Inventou-se a manha infantil e a criança chata que tem o direito de incomodar o planeta. Inventou-se também a intolerância e um tipo de mariquice infantil masculina ao qual se o filhinho for beliscado na rua o ‘papi’ (papi? que falta faz Nelson Rodrigues, o tarado brasileiro…) processa judicialmente o agressor. A comparação entre a criança de antigamente e a atual já foi devidamente explorada por rabugentos intragáveis, antipáticos detestáveis, intelectuais ensimesmados, comediantes cínicos e outros maravilhosos por aí.
A figura do tio parece que sumiu mesmo. Virou uma referência familiar episódica, desta família atual, quebradiça que também dura apenas meia dúzia de anos e se separa, divorcia e se odeia. Ou virou qualquer estranho na rua que só por cumprimentar a criança vira ‘tio’. Nem a sociedade é tão amorosa assim, isto é uma deslavada mentira da futilidade social, nem deveria ser tão estilhaçável como são os casamentos atuais.
Uma coisa importante é que os meus tios, desta minha história, envelheceram e nunca brigaram entre si, pelo menos eu nunca vi. Os seus diversos filhos não foram nunca fonte de desavença entre eles.
Ter tios assim foi um presente. Por hoje chega de inventar coisas, histórias e tios. O artigo já bateu o tamanho certo. JMA-OG.
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