Não se discute com quem viola princípios

A espetacular frase do título, de Schopenhauer[1], nunca passou despercebida, por alguns pelo menos. Estima-se que pessoas cuidadosas e preocupadas com as próprias afirmações, pensamentos e visão de mundo acabam se interessando por sua lógica. Conhecer princípios invioláveis de qualquer área do conhecimento, e reconhecer suas correções, sempre foi um bom sinal de inteligência.

Na atual sociedade do absurdo, em que muitos opinam sobre o que seu fígado manda, ou o seu reto, quem mais poderia estar sendo afetado com a cultura do não-conhecimento – ou treinamentos uhu-ahá que lotam auditórios de autoajuda em domesticações cognitivas-, seriam cientistas, intelectuais, estudiosos, pensadores e outros dedicados ao conhecimento formal. Mas também, danem-se esses aí, alguém dirá de algum quarto dos fundos. E nada disso é novo. Confinhal[2] no expurgo francês de condenação à morte de filósofos e poetas alinhados às potências do Eixo, pouco antes do final da 2ª Guerra, cunhará: ‘A República não tem necessidade de sábios.’ Por que um cafona e pós-cloroquínico 2022 tê-lo-ia?

Por outro lado, nem se diga de modo meio piegas, que o conhecimento é altruísta; e seus usuários seriam injustiçados. Isso não pode ser uma máxima, sob pena de uma clichelização moralista.

O conhecimento pode ser uma até onírica fonte de prazer, e, de quebra, um bom mote de vaidade. Paul Feyerabend[3], o maldito favorito da Filosofia da Ciência contemporânea, após ‘rebaixar’ a ciência à ideologia e à tradição, noutra[4] obra, dispara: ‘A abordagem teórica é convencida, ignorante, superficial, incompleta e desonesta’. É Feyerabend sendo Feyerabend, uma espécie de Diógenes do século 20. Sim, Diógenes, o inventor do cinismo e o que dizia que mordia[5].

De qualquer forma o conhecimento resistiu a todos os séculos e suas barbarias epocais, e segue como fenômeno inabalado, aliado à sua irmã indecifrável, a inteligência. Na contradição de Sófocles[6] que na mesma passagem afirmava que ‘ser inteligente é parte principal da felicidade’ e ‘na ausência da inteligência reside a vida mais agradável’, certamente deveríamos optar, quem puder, pela primeira afirmação.

Imagine-se, por exemplo, um diálogo entre um excelente imunologista – excelente, de verdade- e um mamífero qualquer de uma das nossas ‘pacatas’ cidades sulamericanas. O estudioso diz e explica o óbvio, que vacinas são muito importantes, a que o néscio, de imediato interrompe e lacra: eu discordo, não acredito em vacina.

A formidável prática da estupidez no quinto[7] grande primata sem rabo, nós, humanos, em razão da constância se tornou previsível. Os estultos não falham, chegam a ser pontuais. Deixe-os falar e a bobagem virá, altiva e sábia, enquanto bobagem.

E não se lhes vá com chatices do conhecimento. Lógicas, sistemas, epistemologias, modelos evolutivos, testagens, teorias, literatura especializada e métodos. A ignorância proativa é impávida, e apenas a ela foi outorgado o olímpico e imediato poder de, sem pestanejar, jogar no lixo todos esses 8 fatores do conhecimento complexo, sem parafrasear Edgar Morin em seu introdutório livro homônimo.

Também não se pense que autores, papers científicos ou até referências – como as espumosas notas de rodapé que se veem neste artiguinho aqui- possam adiantar alguma coisa. Do mesmo modo que atualmente se ‘cancela’ a poesia deística de um Chico Buarque em vida, de nada adiantaria a ressuscitação de um Einstein: nosso tosco de plantão e de prontidão para vociferar asneiras teria certezas nucleares para não ouvi-lo. E ainda zombar do gênio. Sim, a estupidez ainda costuma trazer consigo o traço marcante duma valentia patriótica, ou autoralista mesmo.

No plano subjetivo todo tolo se acha um gênio, ou pelo menos nunca um tolo, mesmo que dizendo tolices cotidianamente. É o que Descartes[8] dizia do bom-senso, que é das coisas mais bem distribuídas, porque todo mundo acha que tem em quantidade suficiente.

Talvez o problema não seja a falta de conhecimento, mas uma referência cultural equivocada sobre o próprio conhecimento. Ninguém menos que Clifford Geertz[9] aponta: ‘O problema é que ninguém sabe muito bem o que é cultura’. Talvez essa fosse a chave: cultura. Uma sociedade que não emulsifica valorativamente o conhecimento como o grande espetáculo da humanidade, ou beleza marcante do homo sapiens, não criará uma visão encantadora do conhecimento humano.

Em vez disso, requenta-se nesta atualidade certa estrutura estudada por Foucault, na mudança de comportamento desde a Idade Média, de relação entre saber e poder. Só que agora, na forma degenerada, sob um dos 3 equívocos que o próprio Foucault[10] apontou no conceito de ‘poder’: subserviência, subjugação e dominação. Nosso embriagado de falso conhecimento quer fechar supremas cortes, invadir Capitólios, reconceituar o Direito secular e dominar o mundo – ou seu inimigo-, isso tudo num diálogo erístico de almoço de domingo farelizado por farofa. Ele negará vacinas e elegerá ditadores, violando rudimentares princípios já sedimentados por simplesmente todos os historiadores democráticos.

O conhecimento não se ‘magoa’ com a estultice, mesmo a comissiva, operosa e geradora de dano. Talvez, usuários do conhecimento acabem sendo, de uma forma ou de outra, uma espécie de Sócrates[11], que se via amiúde maltratado e, ao ser efetivamente chutado, respondeu com paciência ‘Se um asno me desse um coice, iria eu incriminá-lo?’

Cada conhecimento produz seus princípios que, alguns, de tão sedimentados, deixaram de ser teorias para se tornar verdadeiros fatos científicos ou núcleos duros. Nalgumas áreas, leis universais. Por exemplo, a ‘evolução’ na Biologia, que troca sua qualificação, após 130 anos, desde 1858, apanhando da própria ciência em desconfiança, sem encontrar uma única contradição, de teoria para fato, de acordo com o biólogo Ernst Mayr[12]. E a gravidade, na Física. A cronologia, na História. A democracia e a dignidade da pessoa humana, no Direito.

Assim, numa conversa ainda que informal e absolutamente solta de rigores e caretices, mas sobre qualquer área do conhecimento humano sistematizado, só uma coisa não pode ocorrer para que não viole o inviolável e de aí não se consiga construir mais qualquer diálogo: a violação de princípios.

Princípios desafiam – e derrotam- ideologias, visões de mundo, lados políticos, sistemas filosóficos pessoais e interesses políticos. Tem que ser assim e simples assim. Se eles se sedimentaram historicamente como válidos e inquestionáveis, podem representar meras amarras mediatas, que sejam, para toda e qualquer construção teórica ou conceitual de um objeto específico, mas não podem ser violados. Evoluem e se aprimoram, mas não se violam, à cada época.

Daí, ‘não se continua’ a conversar, ou se dar trela, no Direito, por exemplo, com quem defende o nazismo, racismo, homofobia, machismo, ditadura, intervenção militar, poder central, escravidão, abuso de menores e tantos outros assuntos e conceitos que não aceitam desculpas escapistas, episódicas e malandras, como, por exemplo, o correto direito constitucional de ‘liberdade de expressão’, conforme um insuspeito Dworkin[13], que, obviamente, em todas as democracias constitucionais, tem limites e jamais autoriza o crime de ofensa.

Não fosse assim, nas democracias constitucionais não estariam os mesmos crimes igualmente previstos, inclusive com tribunais especializados em violações humanitárias, pelo Cone Sul, a Corte Interamericana de Direitos Humanos; na Europa, a Corte Europeia, como também o Tribunal Penal Internacional e outros.

No fundo, esta nova visão egocêntrica de que a opinião possa ser conhecimento, de medicina a direito constitucional, ou física nuclear e química básica, vai dar no mesmo, é um misto de arrogância egocêntrica, com uma visão absolutamente deturpada do conhecimento, no sentido de que qualquer um que resolva possa saber sobre o que quiser instantaneamente.

Repare-se que este novo modo cultural não se aproxima ao que Marx[14] teorizou como ‘alienação’, acerca da perda de controle, em suas 4 dimensões: à natureza, à atividade produtiva, ao seu ser genérico, e uns em relação aos outros. Aqui não há perdas, mas jactâncias, inclusive cognitivas e intelectuais. Tudo falso e patético, ou certamente criminoso, mas há.

No caso brasileiro, fica patente que uma perpetuada política patrimonialista surgida de um estamento burocrático, referida criticamente por Raymundo Faoro[15], dos últimos 70 anos, falhou com a educação, não apenas culposamente, mas enriquecedora de certamente todos os utentes de cargos de primeiros escalões por todo o sempre no cenário nacional.

Inteiramente com razão, o Discurso do Fracasso, de Darcy Ribeiro ao receber o invejável título de doutor honoris causa[16] na Sorbonne, em 1978, já sinalizando no sentido da promiscuidade educacional brasileira. Ali Darcy apontava um futuro preocupante.

Com todo este cenário aliado às modernidades tecnológicas e urgencificantes da própria existência e relação humanas em que nada mais pode esperar, o maior vitimado acabou sendo o conhecimento que demanda o último item do consumismo: o tempo. Nesta urgencificação inclusive dos sentidos, Sygmunt Bauman[17] sentenciará que ‘o mercado não sobreviveria caso os consumidores se apegassem às coisas’. Se o conhecimento é descartável, que se dirá de meros princípios…

Assim, o conhecimento foi o último a apagar as luzes.

Neste momento o silêncio entra em cena, não pedindo para falar, mas para ser ouvido.

Jean Menezes de Aguiar


[1] A Arte de Ter Razão.

[2] Michel Winock, O século dos intelectuais, 501.

[3] A Ciência em uma Sociedade Livre, p. 131.

[4] Adeus à Razão, p. 35.

[5] Le Nouvel Observateur, Café Philo, p. 37.

[6] Apud Schopenhauer, Aforismos, p. 45.

[7] Os outros são o orangotango, gorila, chimpanzé e bonobo.

[8] Discurso do Método.

[9] Nova Luz Sobre a Antropologia, p. 22.

[10] Conceitos Fundamentais, p. 27.

[11] Apud Schopenhauer, Aforismos, p. 79.

[12] Uma Grande Discussão, p. 162.

[13] Levando os Direitos a Sério, p. 141 e ss.

[14] István Mészáros, A Teoria da Alienação em Marx, p. 14.

[15] Os Donos do Poder, p. 825.

[16] https://imagesvisions.blogspot.com/2019/09/darcy-ribeiro-na-sorbonne.html

[17] Vida Líquida, p. 48.



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